terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Meg

       
        AVISO A POLÍCIA ESTA CONTA E MEU COMPUTADOR ESTÃO SENDO UTILIZADOS POR BANDIDOS À MINHA REVELIA MEXEM NOS CONTROLES, ALTERAM ARQUIVOS

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DENUNCIE O FASCISMO BRASILEIRO ATUANDO NAS INSTITUIÇÕES DE ESTADO COMO RIO DE JANEIRO


     MEG

                                                        Eliane Colchete

       




                                                                                 Escrito em Outubro de 2004 a Janeiro de 2005


            I –



       Ela submeteu o reflexo ao escrutínio. Parecia bem com a blusa nova, o salto, a saia ligeira com babados pendendo harmoniosamente sobre o tecido fino. Aprovando, completou o conjunto com a bolsa a tiracolo e saiu.
        A tarde estava fresca, a loja de discos da esquina deixava reverberar um som longínquo.


-  Meg! – Alçou o semblante, procurando a origem da voz que a chamava pelo nome.


          Na calçada oposta Jaqueline, Mirtes e Giovanna acenavam e Meg percebeu pelo influxo da face rubra que Jaqueline havia pronunciado o seu nome, as amigas da revista querendo ostensivamente que ela se aproximasse.
          O expediente findara por aquele dia. Todos seguiam o curso das rotas traçadas pelos ônibus. A grande estação central funcionava como um pólo autêntico para onde convergia a maioria das pessoas que ali escolhiam as vias férreas ou os ônibus urbanos conforme a distância dos trajetos.


-          Onde vocês estavam? Não havia ninguém no banheiro !


-         Estávamos com a Nelly. – O aspecto jovial das moças acentuou-se devido ao ar  picante, entre entusiasmado e zombeteiro. Meg compreendeu de imediato.


-         Com a Nelly? E o Rick?


           Nelly e Rick viviam em uma espécie de vai e vem desde o tórrido romance - que havia durado exatamente duas semanas – convertido desde então no mais fervilhante assunto entre elas. Era uma questão importante se voltariam ou não, o que conversavam quando se encontravam, contidos no status de apenas bons amigos, e grandes idéias surgiam sobre o que poderia ser feito para reaproximá-los. Rick trabalhava como motorista de um dos diretores da revista e passava os intervalos refestelado no veículo longo e luxuoso, ouvindo o rádio e espiando as moças que passavam à frente do prédio imenso onde funcionava a redação.
            Contudo Meg e as amigas da revista não participavam do núcleo quente, da alma do negócio – a propaganda e a composição de artigos. Conformavam-se à modéstia do departamento financeiro. Enquanto Nelly  era secretária na seção de cartas, Meg e as outras ocupavam-se com digitação, contabilidade, coisas assim comuns.
            Isto dotava Nelly de uma espécie de preminência nada fácil de definir. Todas a tinham na mais alta conta e a consideravam como uma espécie de mãe.


-          E então...? – Meg insistiu, curiosíssima – Nelly e Rick estavam juntos?


-         Não. – respondeu Jaqueline, pondo-se as moças a caminhar vagarosamente. De algum modo haviam se tornado vagas, ponderando com cuidado a questão.


-          Rick não estava no estacionamento. Encontramos Nelly na esquina e fomos falar com ela. É claro que devia estar querendo falar com ele mas disse que  era só coincidência, que tinha alguma coisa para fazer e ia ficar até mais tarde –  Giovanna explicou, com sua voz suave, vagarosa, um tanto arrastada que combinava bem com seu talhe robusto, seu jeito clássico de um certo ar atemporal.


-          Eu me ofereci para ficar com ela mas Nelly recusou. Não posso compreender o motivo. – Giovanna completou. Pareciam desapontadas e Meg pensou um pouco nas informações novas, intentando concatená-las em alguma explicação coerente.


-          Pois deve ter sido isto mesmo! Ela deve ter o que fazer, ora!


-          Não sei... – Mirtes atalhou com agilidade, a voz fina vibrando as sílabas com surpreendente rapidez, como era o seu costume. Pequena, com o cabelo crespo, curto e clareado,  mostrava um semblante preocupado.


-          Ela deve estar esperando para ver se descobre onde o Rick foi. Ele bem pode ter ido a “algum” lugar, com “alguém”...


                     As moças se puseram imediatamente tão preocupadas quanto Mirtes. Rick devia estar com alguma das inúmeras meninas que o assediavam e isso ameaçava o faz-de-conta que era para elas como que a coisa mais séria.


                      Silenciosas caminharam mais um pouco.


-          Bem,  vocês vão pegar o ônibus... Eu...


              Meg ia  enunciar diplomaticamente que  estava preferindo o trem de modo a deixar-se à parte das amigas. Mas Mirtes antecipou-se com um trejeito ferino.


-          Sim, claro, dona Meg vai para a casa da irmãzinha, não é mesmo? Que coincidência! É bem no caminho do Nelsinho que ela mora...


                 Meg sorriu. Lisongeava-a que reparassem em seus sentimentos e atitudes. Não era Nelly, não trabalhava na correspondência, não era o centro das atenções, não era a mãe de todos, mas as outras também farejavam os seus romances. Sentia-se ao mesmo tempo algo temerosa. Nelsinho era casado, tinha  três filhos! Ninguém devia saber!


-          Coincidência... – Ecoou irônica, com um  gesto malicioso de “pouco – importa”. Destacou-se do pequeno grupo por uma ruela e um pouco mais adiante postou-se imóvel, à espera.


                    Nelsinho sempre passava por ali em seu carro cor de caramelo, seus cabelos ficando grisalhos, meio calvo, um tanto gordo, o peito cabeludo, de algum modo a imagem do pai de família construindo uma carreira. Simpatizava com Meg e quando a avistava, aparentemente esperando o ônibus para o subúrbio distante onde ele também morava, não deixava de convidá-la para uma carona.
                           No entanto o que Nelsinho não sabia era que Meg esperava quase duas horas, propositalmente, por ele, pois os horários  na verdade não se sobrepunham e ela mentia afirmando que era um feliz acaso o fato de que, com as horas extras que estava cumprindo, pudessem assim se encontrar. Não havia tal coisa e ela ficava todo aquele tempo sentindo a ânsia que a expectativa da chegada dele provocava, todo tipo de pensamentos passando por sua mente, esperando, esperando... Tampouco ele sabia que Meg não morava realmente naquele bairro distante. Sua casa ficava em um lugar bem mais próximo. Mas ela aproveitava o fato de sua irmã de criação, Rafaela, morar com o marido no mesmo bairro que Nelsinho. Ela sustentava tudo, as mentiras, o esforço da espera, apenas para que pudessem partilhar aquela hora até chegar no local em que ele costumava parar o carro para que ela saltasse combinando encontrar-se ali novamente no dia seguinte de manhã bem cedo e virem juntos à revista.
                    Meg vivia então um frêmito, a vertigem do inexequível. Era totalmente despropositado esperar qualquer coisa de Nelsinho. Como mulher ela sabia que o agradava. Mas a vida dele era tão estável, costumava falar com carinho da mulher, da filha mais velha, dos dois meninos, como se ela, Meg, fosse apenas aquilo que ela podia mesmo ser, uma amiga. O apelo profundo em seu coração não devia, ela sabia, passar despercebido ao homem. Havia algo no ar e a constância dos encontros desenhava-se como um limiar a partir do qual uma possibilidade se entretecia gradativamente. Ela não exigiria mais do que simplesmente afeto, atenção, eventualmente sexo.
              Que ele queria isso era-lhe ao mesmo tempo claríssimo e sumamente dúbio. Jamais havia se envolvido com um homem casado. Às vezes ocorria-lhe perguntar-se o que afinal estava pretendendo. Mas tudo havia acontecido rápido demais em sua vida e aos dezenove anos trabalhava fora, havia tido um filho e se separado do marido,  perdera o pai, a mãe se envolvera com  um outro homem e não tinha tempo para ela nem para coisa alguma. Assim sentia-se impelida por aquela necessidade de ocupar o assento do carro ao lado de Nelsinho, tagarelar com ele no jogo da sedução, observando as mãos firmemente aplicadas ao volante  e não se dava o vagar de responder-se a si mesma. A impossibilidade – eis o tônico irresistível...
  

       II-


               Rafaela estava na cozinha, o rosto severo não amenizado sobre as luvas amarelas movimentando-se ao sabor da água, lavando louça. Durante o banho, Meg, a mente em turbilhão devido ao cansaço excitado pelos acontecimentos do dia, tentou concentrar-se em Nelsinho e a idéia dele, os ecos das palavras que disseram, os gestos esboçados do homem ao volante, tudo apenas passava jogando-se na velocidade do seu fluxo de consciência.
             Pouco a pouco a mente relaxava, sentindo a tepidez que a limpava completamente, renovando o universo. Por alguns instantes tudo silenciou, restando a sensação do estar, o cansaço misturando-se ao alívio, o sono avizinhando-se, uma necessidade de alguém, de conversar com alguém, de ter o conforto da presença, braços envolvendo-a, sentir que se interessavam por ela, que queriam realmente ouvir qualquer coisa que ela tivesse para  dizer porque se preocupavam...
              Assim adentrou o espaço da cozinha, o short, a blusa ligeira, a toalha enrolada sobre os cabelos.


-          Santa louça! – Brincou, procurando favorecer a cumplicidade da irmã. Rafaela respondeu com certa irritação.


-          Um inferno! É lavar, lavar e depois lavar novamente. Se eu fosse rica usaria tudo descartável.


-          Mas seria um despropósito, Rafaela! Imagina, tudo descartável em todas as refeições..! – Meg sorriu.


-         Não teria nada demais, ora essa. Dinheiro é para se gastar ou deveria ser se o  tivéssemos. – Rafaela sentenciou. Meg, sentindo a dureza na voz em que almejava encontrar algum apoio, tentou contornar o sentido desfavorável da conversa:


-          Deixa que eu lavo o que falta, para você. – Ofereceu com gentileza, não obstante o seu cansaço.


-          Não precisa. – Rafaela retrucou, precipitadamente, o que levou Meg a sentir-se  algo intrigada.


-          Ora, Rafaela – acercou-se, com cuidado – Você não quer que eu me sinta à vontade em sua casa...?


-          Não, Meg. – Ela sobressaltou-se com a  resposta inesperada. – Não mesmo!


               A expressão da irmã continha um meio sorriso algo frio, que poderia talvez ser interpretado como uma brincadeira. Meg havia contado com um óbvio e polido “sim” para acrescentar “então deixe-me ajudar com o serviço” mas agora aquilo perdera o sentido e ela se sentiu só. Mauro aproximou-se, o marido de Rafaela.
                   A camiseta de malha moldava-lhe os músculos jovens e ele sorriu com reservada simpatia.


-          Oi, Meg. – Olhou-a de relance. Meg devolveu-lhe o cumprimento esforçando-se por demonstrar despreocupação e naturalidade.


-          Rafaela,  estou querendo jantar. Deixa essa louça para depois.


                A jovem de cabelos bastos, escuros e frisados, os traços fortes delineando o semblante austero, voltou-se para o marido.


-          Tudo bem, só um instante.


               Mas estava visivelmente atrapalhada com a pilha de louça ainda cheia de espuma, o fogão atravancado de panelas, a profusão de potes sobrepondo-se um pouco por toda parte.


-          Pode deixar, Mauro. Eu  vou fazer o meu bife agora, posso fazer o seu também. – Meg ofereceu.


                  Ele titubeou por um momento, talvez esperando algum sinal da mulher. Rafaela continuou, como se não houvesse captado a sugestão, a desbravar a selva de pratos, copos e talheres sujos. Meg se pôs a liberar o fogão de sua carga excessiva, procurando a frigideira em meio ao caos.
                   Subrepticiamente examinou com o olhar a barriga de Rafaela, o entumecimento da gravidez principiando a tornar-se evidente. Imaginou como poderia a irmã dar conta das responsabilidades domésticas quando o bebê nascesse. Agora mesmo, estando só com o marido, a casa raramente estava arrumada, a cozinha sempre cheia de pratos por lavar... No entanto aquele pensamento servia-lhe também, assim como os movimentos pausados com que acorria à tarefa de servir-se e à Mauro, que como de costume iria saborear o seu jantar no quarto em frente à televisão, para mascarar a mágoa que as palavras de Rafaela haviam lhe causado, levando-a a encolher-se por dentro.


    - Esfregue o bife no óleo e ponha cebola em rodelas. – A irmã comandou, referindo-se ao preparo do jantar do marido, com um tom que lhe pareceu estranhamente autoritário.


                       Meg preferiu nada replicar. Conscientizou-se de que não devia continuar ocupando a casa da irmã ainda que isso frustrasse a sua alternativa de acompanhar Nelsinho em seu trajeto diário entre o trabalho e o lar.
                      Tudo convergiu naquele meio desgosto, sentindo-se mais solitária do que nunca ali na cozinha enquanto a irmã, dedicando-se freneticamente à louça, ao seu lado, na verdade situava-se por sua própria vontade tão distante que toda comunicação era impossível entre ambas e ela compreendeu que estar às voltas com Nelsinho era também sem sentido.
                       Visualizou o casal – Nelsinho & esposa – agora, naquele instante, em casa – o que estariam fazendo? Jantando juntos, vendo televisão ou fazendo amor. Provavelmente a mulher dele não era como Rafaela quanto ao serviço doméstico mas sim pontual e organizada como... como ela mesma, Meg, gostaria de ser se fosse a mulher de alguém... Ela queria isso? Sim! Não era justamente em querer isso a que tudo se resumia, afinal? Mas não de todas as formas que conhecera, não como Rafaela, insensível,  sempre com  tudo por fazer, de vez em quando discutindo ferozmente com Mauro por bobagens. Não como seus pais, que se odiavam. Nelsinho... Ele seria um homem terno? O ideal? Mas que ideal louco que já partia e se instalava no impossível, no maldito, no que não devia ser esperado? Ela não queria que ele abandonasse a família por sua causa. Ela só queria carinho, afeto, sentir-se protegida, confiar em alguém, abandonar-se... Pensou no filho, em Rui, em férias na casa dos avós paternos. Desejou intensamente estar com o menino, compartilhando alguma familiaridade que pudesse dar sentido ao mundo e se perguntou como ele deveria estar se sentindo, lá longe, agora...


  

      III –


           Meg acordou, a antiga intenção de permanecer no universo compacto e protegido que era o sono relutando em aceitar o real claro e desperto. Por fim levantou-se vagando por instantes entre o pequeno espaço do sofá da sala em que  costumava dormir e o cubículo adjacente reservado ao banheiro.
            Enquanto escovava os dentes sentiu a pressão  ínfima das mãos de Rui, seu filho, abraçando suas pernas, a cabecinha com cabelos lisos e morenos encostando-se aos seus quadris. Ela enxaguou rapidamente a boca, interrompendo-se para abraçá-lo:


-          Olá comandante! Todos a postos?


          Brincou, empregando a metáfora já conhecida e tantas vezes repetida entre eles. O menino projetou a mãozinha erguida em um gesto de saudação militar, o rostinho sorridente. A mãe o beijou e a seguir envolveram-se com os preparativos habituais da higiene ao desjejum. Mais tarde Meg o deixou na escola, caminhando apressadamente a fim de pegar  um dos ônibus, entupidos de gente àquela hora, que a levasse à revista.
          O trajeto lento reordenava os significados das experiências recentes que ela procurava, um tanto confusamente, estabelecer como conclusões plausíveis, verdades factuais claramente enunciáveis.
           No entanto seus pensamentos eram demasiado ligeiros, sobrevoando cenas vividas, impressões reafirmadas sobre coisas e pessoas, sentimentos que a levavam à impotência quanto a estabelecer um sentido observável que a fizesse encontrar uma solução. Não se questionava quanto à origem daquela necessidade que a impulsionava na busca de algo assim como uma solução quando apenas deixava-se reentrever o espetáculo de suas memórias recentes, a rotinas de suas experiências íntimas.
                     O fato de que subjacente a qualquer recordação existia uma tendência semiconsciente a considerar-se fora de lugar, deslocada em meio a acontecimentos que não lhe diziam significativamente respeito ainda que compusessem o espaço mesmo de sua experiência vivida, não se oferecia como tema de reflexão. Era algo que se lhe afigurava palpável, evidente, prévio. Ela mesma, Meg, havia se tornado algo que não previra, algo com o que, por vezes, não sabia lidar.
               Ela se havia pensado – desde que consolidara sua visão de si mesma, por volta dos onze anos -  como uma garota comum, destinada a uma profissão liberal, mas agora, aos dezenove, desde que o pai se fora, a mãe  não tendo sido capaz ou não parecendo ter se interessado por conservar o mesmo nível de vida a que Meg se havia habituado e que considerava ainda como “seu”, agora que toda a turbulência de seu tempestuoso caso com Humberto, o pai de Rui, havia passado, agora que sua nova rotina se havia consolidado e as cicatrizes deveriam estar secando, agora não se reconhecia mais.
         Era isso o que a levava, quando rememorava suas experiências, a procurar causas, motivos que se concatenassem para explicar-lhe a dispersão em que se encontrava ou então, ao invés, a buscar meios, modos pelos quais haveria um acesso que a levasse novamente a ela mesma, à maneira de uma “solução”.
         Enquanto o ônibus a obrigava a toda  espécie de contorção para manter-se agarrada à barra metálica que a sustinha em pé, em meio aos esbarrões inevitáveis dos outros passageiros no veículo superlotado, lembrava-se do que ocorrera há uma semana quando reuniu as roupas e os poucos pertences que estavam na casa de Rafaela em uma sacola e voltou à pequenina casa em que morava agora com a mãe.

Pensava no modo como a irmã de criação não havia procurado desfazer a impressão de que não queria realmente que Meg se hospedasse ali. Então ela se deparou com a costumeira sensação de desconforto ao pensar na Rafaela da infância que costumava ofendê-la, tentando inferiorizá-la com seus comentários mordazes. Meg se recordava da vez em que havia ganho um vestido novo, quando se recuperava de uma inflamação na garganta.
 A aparência atraente do vestido em seu corpo, vista através do espelho, renovou seu senso de esperança e fé na vida. Enquanto sentia crescer o júbilo interno, o sorriso amplo no rosto, apressou-se a encontrar alguém na sala  ou no quintal vasto da casa enorme da infância.
Queria compartilhar aquela poderosa sensação de plenitude. Mas assim que viu Rafaela no quintal, antes que pudesse dizer qualquer coisa, ela a chamou para que se acercasse. Rafaela estava de pé, encostada ao muro do quintal olhando a rua. “Venha ver uma coisa, Meg. Olha aquela menina. Está reparando no vestido, no jeito de metida que ela tem? Igualzinha a você!”
   Agora o ônibus se aproximava do lugar em que deveria saltar. A cena da infância na memória se misturava à ligeira inquietação gerada pela atenção ao presente na qual reverberava ainda o eco da sua tristeza.
     Se Rafaela fosse alguém em  quem ela pudesse confiar... E a mãe, a despeito de Rafaela não ser realmente sua filha, sempre parecera preferi-la a ela própria, Meg. Como se quisesse que Meg fosse como Rafaela, ousada, um tanto ríspida, autoconfiante, com o olhar altivo... Saltou do ônibus, a sensação de impotência levando-a a uma desorientação ligeira. Logo retomou o senso habitual do próprio caminho e se pôs a andar.



IV –


                     Esperou pacientemente o elevador enquanto Jaqueline se aproximava. As duas se cumprimentaram e Meg observou casualmente o quanto a amiga era jovem, ainda mais do que ela mesma, a pele muito clara ostentando manchas brancas oriundas de um tipo de micose, os dentes dianteiros caracteristicamente afetados por sinais de cárie.
                    Sem deixar de nutrir a afeição costumeira, aquilo ressoou em seu humor já sensível, levando-a a sentir-se ainda mais afastada de si mesma, daquela que era originalmente ela mesma, na escola aos onze anos.

         Ao entrarem na ampla sala que compunha o cenário do seu trabalho cotidiano aquela índole atenta, uma espécie de atividade observadora autônoma, como que desligada de sua decisão pessoal, persistiu, abrangendo toda a equipe de moças que laboravam, casualmente unidas pelo destino.
          A pressão que as vergava, o peso de uma estrutura hierárquica que de nenhum modo as privilegiava, as exigências da produção, tudo lhes conferia um ar de deslocamento infinito. A ausência de proteção as levava a um senso de independência algo fortuito, precipitado. Não havia opção, elas estavam todas batalhando.
                        Meg sentia-se especialmente irritadiça àquela manhã. Jaqueline a as outras principiaram a falar sobre fotonovelas.


-          Você gosta, Meg? Patrícia, do departamento pessoal, tem uma coleção e empresta exemplares.


-          Isso é subliteratura! – Meg sentenciou, redondamente, com expressão áspera. Queria escapar da vulgaridade. Queria não se sentir submetida aos fatos.


                O ambiente pareceu opacizar-se à sua resposta. Giovanna, que havia feito a pergunta, franziu o cenho, o silêncio avançou sobre os minutos.


-          “O amor é um não-sei-que, que nasce não-sei-onde e dói não-sei-porquê”. – Jaqueline recitou, com voz branda, como quem apazigua os ânimos.


-          Subliteratura! – Insistiu Meg, farta.


-          Mas é Camões! – Jaqueline respondeu modulando a voz com tanto cuidado que a exclamação, ainda que claramente posicionada, semelhou mais um simples comentário, quase casual.


                  Meg voltou-se rapidamente aos próprios afazeres. Contudo mal podia ocultar sua decepção. À tarde a responsável pela equipe solicitou, por algum motivo que não lhe foi esclarecido, que se assentasse à parte das outras, a fim de terminar alguma tarefa que no entanto não oferecia em si mesma qualquer determinação que tornasse compreensível o motivo da solicitação.
                      Alguns  minutos após o início da abertura dos envelopes que ela deveria conferir veio-lhe à lembrança o ambiente sereno de sua casa minúscula, a casa nova em que estava morando com Rui e a mãe, desde que seu pai se fora deste mundo e Rafaela se casara com  Mauro. Especialmente aquela hora da tarde em que a mãe costumava ausentar-se nalguma visita interminável, tudo parecia íntimo, amável, tocado pela eternidade na sua lembrança da casinha e lágrimas correram por sua face, como se fosse um horrível equívoco não estar lá, agora.

                    Com muita simpatia Jaqueline acercou-se, a  resposta ríspida de Meg àquela manhã levando-a a perceber-lhe a fragilidade emocional. Convidou-a a lancharem juntas.
                    Um rapaz apareceu de passagem pela sala e sorriu, acenando. Meg demorou-se a olhar a figura leve do homem que fluía no ambiente, com desenvoltura. Seu nome era Gustavo. Logo que viera trabalhar na revista, há alguns meses, Meg fizera um período de treinamento com ele e se sentira atraída por seus modos afáveis. Chegaram a encontrar-se algumas vezes mas tudo era tão vago, jamais combinavam o próximo encontro que simplesmente surgia sempre como que por acaso e isso a incomodava.
                  Detestava sentir-se uma distração casual. E depois aquela sensação de ardor expectante havia se transferido para Nelsinho. A chance, o encanto da livre possibilidade das coisas não a atraíam. Sentia-se como se jamais houvesse sido jovem, como se houvesse saltado da pura infância até um tipo de maturidade instalada de  uma vez por todas. Era então algo já feito e produzido, alguém que nada possuía para arriscar. Era uma velha e seu rosto original de idosa acalentava-a durante as frias noites solitárias.


V –


              Correspondeu à saudação de Gustavo. À hora do lanche Jaqueline conversava, seus modos transmitindo um sentido de proteção. Falava sobre a festa que estava pensando em fazer. Chamar todo mundo! Ia ser sensacional! Poderiam reunir Rick e Nelly em um ambiente adequado. Tudo daria certo entre eles se o clima fosse propício. Detiveram-se em meio à conversa para saborear os sanduíches.


-          Quem manda é a grana, meu chapa! – Dois jovens conversavam, próximos.


-          E se as coisas que mudaram lá pelos sessenta foram que a imprensa  passou a produzir os tipos votáveis, o que se deduz?


-          Mas não tem novidade nisso! A aliança representação-riqueza sempre foi notória.


-          Tudo bem mas o que a mudança determinou foi um novo conceito do termo nação. Porque grana gera grama e chega o momento em que os explorados que deviam ficar quietos foram chamados ao novo papel de consumidores. E o que era a aliança da burguesia que se tornou progressivamente o único dono do negócio? Círculos burgueses porém são internacionais por definição. A política tradicional era um entrave, monopólios e interesses locais em um meio de possibilidades fabulosas nas conjugações as mais amplas... Então a nação era isso -  a burguesia territorial, uma contradição em termos que não podia ser contornada para que pudesse  haver estado de direito, ordem doméstica, trabalhadores assalariados e escravidão nas colônias – em vários graus. Mas com a acumulação de informação e meios o proletariado cresceu. Nação passou a ser uma coisa perigosa demais, quase inadministrável. É agora o que pode se opor. Assim  servimos para fabricar políticos enquanto que anteriormente os políticos eram entidades auto-existentes com possibilidades que se tornariam perturbadoras num mundo de movimentos operários internacionalizáveis...


-          No entanto, a nação, mesmo que neste último sentido, existe. E há ou deve haver um jornalismo responsável por ela.


-          Não creio. Mídia se tornou propaganda em todos os sentidos  incluindo o que deveria ser criação artística...


-          Você enlouqueceu? Afinal você mesmo é um repórter!


-          Eu sou a consciência da raça! – Riram e tomaram mais cerveja. Jaqueline e Meg se entreolharam. Nada havia naquela conversa que nelas provocasse mais do que um esgar irônico. Não compreendiam bem de que eles falavam. Afastaram-se, voltando à sala de trabalho.


                 As semanas se sucediam, a normalidade se impunha como uma ordem fixa e incontornável. Eram assim mesmo as coisas. Não havia um modo arquetípico que era ela – a Meg real, por contraposição àquela que vivia e labutava, repartindo o tempo com o filho que era preciso criar. Aquilo havia sido um engano. Era preciso encarar os fatos.


VI –


          Aquele mês se havia evoluído em perspectivas  novas, busca de transformações, caminhos a desbravar, crescimento, confluência. Jaqueline, apesar de ser quase da mesma idade que Meg, vivia um momento completamente singular. Emergia da adolescência. A comparação com a crisálida era inevitável. Nunca havia deixado os limites do papel de menina do bairro e agora estava no centro do mundo. Havia nela uma ânsia do novo, do tornar-se, ela – que arrastava Meg no turbilhão da sua autonomia recém-conquistada – percorria incansavelmente as lojas, comprava roupas como se fosse uma nova pele, um novo ser, experimentava estilos, trocava o penteado, consultava dentistas e dermatologistas, usava táxis, serviços postais, telegramas fonados. Desvencilhara-se da virgindade com um dos recepcionistas do andar da diretoria. Agora apaixonara-se também por um homem casado.
                 Em todos aqueles giros loucos pelas lojas os nomes de Nelsinho e Romão – que trabalhava com a venda de anúncios e por quem Jaqueline se interessava agora – eram repetidos sem parar pelas duas que trocavam confidências. Meg às vezes inseria assuntos que a preocupavam. Seu filho, seus sentimentos sobre ser inadequada, sua relação conflituosa com a família. Mas com Jaqueline era quase como se ela fosse uma jovem igual às outras, com a única preocupação sendo crescer, se cuidar e falar de amor.

             Jaqueline se lançava ao empreendimento da festa que, segundo seus planos, uniria Rick e Nelly. Quem sabe Romão e Nelsinho não poderiam estar presentes ...
                   Rui, aos três anos de idade, solicitava-a intensamente. Meg estava sempre às voltas com o problema de onde deixá-lo enquanto estava trabalhando. Sua mãe negava-se terminantemente a ficar com ele. Ela havia recorrido a serviços esparsos de pessoas que cobravam para cuidar do menino durante o dia mas tais expedientes não eram constantes. As pessoas subitamente encontravam outras coisas para fazer.
           Finalmente surgiu uma creche estadual  na qual havia sido possível conseguir  vaga devido a uma amiga de sua mãe que conhecia mais alguém e assim por diante. Meg continuava insatisfeita pois o lugar, apesar de  limpo e razoavelmente aparelhado, conservava um ar melancólico de carência e desamparo. Sua mãe dizia que aquilo não passava de uma impressão errônea. Havia muito boas referências sobre a escolinha e Rui estava sendo bem tratado, seu aspecto era saudável e não havia com o que se preocupar.
            Mas à noite, quando se deitavam para dormir, ele rodeava os bracinhos sobre os seus ombros e ela sentia que o seu coraçãozinho abrigava um cansaço, uma  indeterminação, uma necessidade insatisfeita que alguma espécie de resignação auto-imposta calava como um queixume a que ele se proibira de expressar. Ela compreendia, queria também ficar o dia todo cuidando dele em casa mas parecia não haver escolha.
          Humberto, o pai de Rui, eventualmente dispensava-lhe uma pensão insuficiente para os padrões do que Meg considerava serem as necessidades do filho. Humberto queria que Rui morasse com ele mas contentava-se em vê-lo nos finais de semana alternados, conforme o combinado. Os pais de Humberto moravam em uma cidadezinha próxima e ele não podia contar com ninguém para concretizar seu projeto. Assim ele também não tinha escolha e as coisas continuavam deste modo ainda que ele jamais deixasse de expressar o seu descontentamento com o arranjo.
            Logo Humberto se ligou a uma mulher, que o acompanhava às sextas-feiras, quando ele vinha para buscar Rui e aos domingos, quando ele o trazia novamente, de quinze em quinze dias. Ela se chamava Yasmine, procurava ser simpática e portar-se com naturalidade mas Meg sentia sempre como se ela estivesse julgando a tudo o que via a partir de algum princípio de valor extrínseco, artificialmente imposto e mantido como uma espécie de clausura.
            Seus modos era frios mesmo quando pretendia ser afável e havia uma expressão algo insegura no modo de andar de Yasmine. Meg procurava manter as coisas em um plano de amizade e correção. Não sentia mais nada por Humberto, isto nela era uma certeza cristalina, e a presença de Yasmine representava apenas alguém com quem  Meg pensava partilhar a criação de Rui.   
              Mas Humberto parecia exercer uma pressão sobre Yasmine no sentido de impor uma comparação subjacente, implícita e insidiosa entre ela e Meg. A visita dos dois, ainda que rápida, a cansava. Não queria se envolver com as muitas complicações psicológicas de Humberto ou de Yasmine e preocupava-se com o que isso poderia refletir em Rui. Mas era, como tudo o mais em relação à sua experiência de maternidade, algo imposto, aparentemente inevitável.
               Não havia como, tampouco, mudar o modo de ser daquele homem por quem nada sentia, de quem nada queria e que nada representava para ela. Por certo havia gostado dele mas a desilusão do cotidiano, a separação, tudo a fizera mudar e agora era como se ele fosse um estranho com quem, paradoxalmente, ela tinha que manter um contato periódico, sabendo que ele era o pai do seu filho, ainda que aquele saber não se conectasse a nenhum sentir.
                 Humberto sempre tinha alguma crítica a fazer sobre o modo como ela cuidava de Rui e não poupava o menino de presenciar-lhe a índole antipática. Meg contornava o mais possível o azedume. Queria que na interação quebrada dos pais Rui sentisse que havia ao menos o calor da cordialidade. Mas nem sempre era possível manter o esquema e Meg sofria por isso. Não sabia porque a imagem que queria ter de si mesma jamais correspondia à realidade.
                   Jaqueline e sua juventude despreocupada agiam como uma rota balsâmica de fuga em toda aquela perplexidade. Com a amiga ela sorria livremente, sentia-se alegre, venturosa e despreocupada.                    
              

VII –


                    A grande ocasião havia chegado. A tarde se desdobrava enquanto Meg discutia com dona Ligia, sua mãe.


-          Por favor, mãe. É só hoje!


-          Não, Meg. Não tem jeito, não mesmo.


-          Mãe, eu quero ir à festa da Jaqueline. O Rui não vai dar trabalho. Fica com ele, por favor!


-          Já falei que não. Tenho coisas para fazer e mesmo que não tivesse eu não quero assumir essa responsabilidade.


                   Meg suspirou. Sabia que o que a mãe tinha para fazer era ir à casa de Gregório, com que vinha se encontrando há um ano, desde que o pai se havia internado para partir definitivamente do mundo. Meg havia chorado a partida dele, na noite em que ele se fora, na sala de visitas de Gregório, onde a mãe estava quando veio a notícia.
                   Eles haviam se separado pouco antes do pai adoecer, após uma vida inteira de ódio compartilhado. Meg sabia que a mãe só se casara porque estava grávida – e havia sido assim que ela nascera, de um descuido, uma inconveniência pela qual a mãe pagara caro, mantendo um cotidiano que não havia desejado. Mas houvera períodos  bons em que as coisas pareceram poder dar certo. O pai era carinhoso com ela e Meg o amava. Agora tentava fazer a mãe colaborar na solução de seus problemas sem que ela denotasse qualquer disposição concreta neste sentido.
             Rui acercou-se da cozinha. Nervosa com a proximidade da noite e da festa, sem que ela soubesse como fazer para ir, já que a mãe se recusava a tomar conta dele, Meg tomou o menino pela mão e começou a caminhar, ultrapassando o portão, quase casualmente.
             A tarde avançava rapidamente envolvida no seu processo de transformação em noite. Rui estava feliz, adorava passear com a mãe. Uma mulher passou por eles, com um menino um pouco mais velho do que Rui. Ela o tratava rispidamente e Meg pensou que jamais agiria daquele modo com seu filho.


-          Mãe, vamos comprar chocolate?


            Compraram chocolates e amendoins. A expressão de felicidade na face do filho era tão contagiante, e costumava ser tão raro estar juntos e sem ter que se preocupar com o horário, que Meg, interiormente, passou a desistir da festa. Ficaria com o filho, recuperariam a familiaridade, a inocência. Mas assim que chegaram em casa, a mãe anunciou, surpreendendo-a:


-          Tudo bem, Meg. Pode ir à festa. Eu vou à casa da  Marlene, o Rui pode vir comigo.


             Meg ficou olhando para a mãe, por um instante, sem compreender. Sabia que ela tinha um encontro com Gregório. O que teria acontecido? De repente o não saber sobre aquilo se repôs nela como um não saber mais essencial que tocava o mundo, os outros seres e a ela mesma. Então não queria estar com Rui? E era assim mesmo que deveria indagar? Não deveria haver uma questão mais fundamental que o seu querer – e que igualmente o fundamentasse? Pois se fosse o caso, o  que seria? Um dever, quem sabe... O que seria o certo. O  certo que deveria ser definido por aquilo que ela era. E o que ela era?
             A mãe de Rui, eis a resposta mais fácil. Porque ela era a mãe de Rui, independente de todas as suas dúvidas, do seu querer e do seu não querer. E em sendo assim haveria o certo, o certo de Rui, o que se deve fazer para educar bem um filho.

              O certo seria ficar com ele. Ir à festa pertencia a alguém livre. Ela porém tinha um dever a cumprir. Ia anunciar esta resposta. Ia dizer à mãe “Não, obrigada. Não precisa. Já terminou”.  Mas Rui adorava a idéia de passear e Meg reparou que ele estava comemorando a oferta aos saltinhos pela sala.


-          Vou na Marlene! Vou na Marlene!


              E Meg os viu, sua mãe e seu filho, arrumando-se para passear e deixando-a só, na salinha  minúscula.
              Podia ir à festa, claro. Podia ir à festa! A novidade daquele poder envolveu a noite, o seu ser inteiro. No entanto semelhava algo relacionado a algum outro mundo, outra era. Estava ali e isso era uma verdade eterna, inquestionável.
               Estar só. Subitamente aquilo lhe parecia bom. O corpo na amplidão. Não havia coerção. Nada do inclinar-se para o que se conservava extrínseco. Não era necessário o dar-se à solicitação dos outros, era um ser completo e pleno. Ligou o toca c-d. Deixou-se  ficar no sofá. Contudo, dali a pouco, alguém mais se acercava tocando a campainha. 

        Meg abriu a porta. Era Rafaela com o marido.


-          Oi Meg. Cadê a mamãe?


-          Não está, foi na casa de uma amiga. – Respondeu enquanto Mauro e Rafaela se acomodavam no sofá. Meg sentou-se a uma cadeira no canto da sala. O c-d havia tocado todo.


-     Que coisa! Vim pegar um dinheiro emprestado com ela. – Rafaela explicou.


-          Que pena. Acrescentou Meg, casualmente. O ambiente pareceu coalhar-se, parado, suspenso. Rafaela levantou-se, foi à cozinha, logo retornando com uma garrafa d’água e dois copos, estendendo um deles ao marido. A saia ampla e colorida destacou a gravidez, a barriga crescendo na luz da sala e Meg reparou que ela estava vestida como que para uma festa.


-          É mesmo... – Rafaela comentou, dando-se conta de algum detalhe. - Você está sozinha? Cadê o Rui?


              Mauro se pôs de pé, após beber a água, depositando o copo e a garrafa na cozinha contígua. Rafaela bebericava o líquido fresco, girando de quando em vez o copo suado em suas mãos.


-          Está com a mamãe. – Meg hesitava. A dúvida, a forma pura da dúvida, havia reassomado nela inexoravelmente. Agora oscilava em torno da  expressão “casa da Marlene”.  Deveria dize-lo à Rafaela? Por certo que sim, mas porque não? Porque tratava-se de matéria sujeitável à dúvida. Quereria o universo que ela o fizesse? Então existiria um dever faze-lo? Haveria importância nisso? Mudaria as coisas? Rafaela quereria saber? Iria até lá se soubesse? Porque continuava calada? Porque não conseguia agir naturalmente e comentar com a irmã sobre o paradeiro da mãe? Os passos de Mauro, casualmente olhando as coisas no aposento, a inibiram.


-          Como está quente aqui! – Ele disse, à toa, para todos e para ninguém.


-          Vamos com a gente, Meg! – Rafaela estalou  no ar a expressão repentina, vibrante, feita ao modo de uma descoberta.


-          Se ela tem grana pro Chopp... – ajuntou Mauro, sorrindo aprovativamente à sugestão da esposa.


                  Meg sentiu-se despertar enquadrando a perspectiva em uma forma nova, clara e nítida, a realidade mesma no surgir da pressão do instante.


-          Ir aonde? – Meg se ouviu perguntar, as palavras vindo como que por elas mesmas.


-          Dar um rolé por aí! – Mauro respondeu.


                   Então ela estava se arrumando. Vestindo uma saia colorida, uma blusa branca. O batom deslizando nos lábios, blush nas faces, sombra colorida nas pálpebras. A luz cooperava com o brilho, Rafaela sugeria os retoques, Mauro esperava sorrindo na sala, estavam no carro flutuando sobre a noite, o ambiente do barzinho incluía uma cascata murmurante, artificialmente jogando-se sobre as pedras aquiescentes. Alguém cantava acompanhando um violão. Um amigo de Mauro havia surgido no caminho e estava ali com eles, compartilhando os risos e o frescor.
                     Mauro e Rafaela iniciaram uma discussão interminável. Sentindo-se tão entre as coisas do mundo Meg sobrevoava as vozes e os silêncios. Não sabia sobre o que disputavam tão ferozmente. Leonardo, o amigo de Mauro, mantinha-se também na posição de expectador.


-          A noite é tão... emocionante...


                     Ele comentou, em um tom amável, quase ciciante.


-          Emocionante? – Ela ecoou, a palavra  se inserindo agora  como também uma coisa, nova e necessária, sempre ali e já surpreendente, um brinquedo ou um enigma, algo bem-vindo e inquietante. Respirou, recuperando-se. Tudo retornou à normalidade. As coisas aquietaram-se na impessoalidade costumeira. A palavra restou com sua simplicidade oferecendo-se ao exame. Na verdade, Meg ponderou, aquele era um atributo um tanto inusitado.
                  Leonardo estava sorrindo. Inclinou-se suavemente e a beijou.



VIII - 


 
                    A noite havia transcorrido entre eles deixando o traço mágico do seu halo na memória. Tudo havia sido perfeito e simples, Leo a convidou para conversarem mais à vontade em sua casa e eles fizeram um amor inesperado, cheio de inexplicável confiança e afeto. Os gestos dele possuíam uma qualidade rara de ternura que a comovia. Por fim, apenas uma coisa a impedia de considerar, na verdade, tudo como “perfeito”. Não havia sido marcado um novo encontro. Ele afirmou “Te ligo” e se beijaram no ponto do ônibus. Assim agora ela não sabia se o veria novamente.
                     O ar da manhã refrescante, mesclado às exalações urbanas, à fumaça das fábricas, ao vapor dos veículos, era de algum modo revigorante, saturado de expressão. Os membros ganhavam contorno sobre o espaço-tempo, a visão alcançando o horizonte ilimitado, os olhos celebrando a luz... Meg respirou fundo recuperando  o sonho e a esperança. Sua consciência fêz-se tranquila, uma  pureza interior a impelia, não pensava agora nas carências, nos conflitos... Seus pensamentos se orientavam naquela sensação de estar sem arrependimentos, sem erros, sem mentiras, sem hipocrisia, sem falsidades... A sinceridade em seu coração  transmitia-lhe coragem e serenidade, auto-confiança e certeza.
              Resolveu tomar um café na lanchonete da esquina. Caminhou então, até o ninho iluminado, o ambiente amarelo-ouro funcionando como atrator na manhã esparsa, fluída e operosa.
               As pessoas se ombreavam no balcão, conversavam, tudo era um burburinho quente, havia excitação no ar e à volta. Meg recebeu sua  xícara de café e sentiu, ato contínuo, que alguém tocava em seu braço. Surpreendeu-se ao deparar com o rosto de Nelly e regozijou-se por vê-la. Naquele meio instante, em que apenas visava ao inteligir da interpelação e se havia apercebido das feições da amiga, uma sensação sem palavras a tornou consciente da amizade que sentia por Nelly, do carinho que sentia pela amiga, da vontade de protegê-la, de como ela parecia jovem, carente do seu amparo... A face original de idosa voltou a incorporar-se nela mesma e Meg sentiu o seu ser autêntico na energia protetora que emanava dessa sua personalidade antiga, sem idade, ancestral.


-          E aí, menina, porque você não apareceu na festa? Que foi que houve?


          Meg acolheu as palavras de Nelly, suas indagações lançadas em meio ao sorriso simpático enquanto recebia, ela também, uma xícara de café. O funcionário da lanchonete era muito novo ainda, moreno, os cabelos encaracolados a custo sujeitando-se sob o barrete branco que lhe completava o uniforme. Sorriu ligeiramente sob o olhar das duas e se pôs a servir mais clientes.


-          Tive que ficar com o Rui. – Meg comentou, sem pressa, pensando que aquilo não era inteiramente verdade mas correspondia aos fatos, de certa forma.


-          Ah, poxa, você nem sabe...


          Pelo jeito havia realmente muitas novidades.


-          E o Rick? Ele foi? Vocês ficaram?


          Perguntou, agora no auge da curiosidade. O sorriso de Nelly tornou-se ambíguo, sua expressão um complexo de emoções perpassando velozmente até que ela inclinou a face de modo a tocar com os lábios a xícara de café.


-          Ficamos. – Ela riu alto, finalmente um traço zombeteiro sobressaindo sobre a trama de sentimentos contraditórios que disputavam em seu interior.


            Meg esperou que ela continuasse, sorvendo também um gole do café quente e saboroso, esforçando-se por dominar a impaciência. Havia algo no ar, pelo jeito da amiga, que não devia ser frontalmente questionado. Algo doloroso, triste.
             Nelly ergueu o  olhar, encarando-a.


-          Ele me beijou. Ele me chamou no meio da festa, para a gente ir conversar no carro. Tudo bem, ele acendeu a luz na cabine, a gente recomeçou a se beijar. Aí, quando ele estava chegando no ponto... Sabe como é, no auge da ferveção, ele perguntou “e aí, você está gostando? Você me ama?” E eu respondi: “o quê? Poxa que artigo interessante...” fingindo que estava de olho em uma página da revista que por acaso estava no porta-luvas, fingindo que não estava nem aí para ele!


               Ela tornou a rir, depositando a xícara sobre o balcão. Como que num lance ensaiado, o barman surgiu naquele momento exato, recolhendo a xícara e sorrindo novamente para elas, um segundo antes de tornar a se afastar em direção aos outros fregueses.


-          Mas Nelly... Por quê?


         Meg perguntou, genuinamente perplexa.


-          Ah, porque... – o rosto de Nelly abandonou o traço zombeteiro deixando-se ficar nu, um brilho metálico no olhar franco, a pura decisão emergindo nela, firmando-lhe o corpo, fazendo-a à semelhança exata de uma  figura de guerreiro antigo, impenetrável.


-          Por que não, também, ora essa? Será que tudo é assim tão automático, tão simples? Que é só “ah, ela quer” então “ah”ela gosta”, porque ele é o homem, a fonte exclusiva de satisfação...


             Pareceu que ela tinha muito mais a dizer e Meg sorvia-lhe as palavras, procurando freneticamente o sentido mas Nelly se interrompeu, quase com brusquidão, voltando a fitar-lhe os olhos límpidos, repletos daquela decisão interior.


-          Deixa para lá, Meg. – Ela  comentou, casualmente. O fato é que era um pouco mais madura do que as amigas do departamento financeiro. Pensou então que não devia, com seus questionamentos, chocar a inocência da outra. Assim, enquanto Meg depositava a xícara vazia sobre o balcão, ambas caminhando lado a lado, aproximando-se da redação, procurou moderar o ímpeto e a linguagem.


-          Mas Nelly, eu  sei que você ama o Rick...! – Meg ainda procurava compreender.


-          Amo... Mas ele tem que mudar aquela atitude dele, você sabe, como se fosse o sultão, como se ficar com uma mulher fosse uma condescendência ou uma espécie de prêmio, como se ele fosse a maravilha do universo e todas estivessem só aí para ele, essa atitude não tem nada a ver.


           Nelly desabafou, feliz por ter encontrado um meio termo entre a vontade de expressar seus sentimentos e o cuidado em relação à inexperiência da amiga. Meg julgou estar começando a entender. O que Nelly dizia, seu modo de colocar as coisas, era de certo modo novo, algo espantoso, com uma característica de arrojo e audácia, e isto a tornou pensativa.


-          Você acha o Rick machista...


         Nelly anuiu.


-          É um pouco isso, mais ou menos por aí... – Pessoalmente considerava as coisas e as pessoas mais complexas do que aquilo, fosse o que fosse, passível de caber em um rótulo, mas concordou, ainda levando em conta a juventude de Meg.


-          E agora Nelly?


-          Como assim?


-          E depois... Ele... Que foi que ele fez? Vocês brigaram?


             Nelly estacou. Estavam em frente ao prédio em que funcionava a redação e ela pareceu querer liquidar o assunto antes de entrarem.


-          Ele ficou puto, sem jeito, surpreso. – Nelly tornou a rir. Mas agora havia algo mais em seu sorriso, uma certa expectativa, uma abertura, como se ela parecesse subitamente muito jovem.


-          Bom, no que vai dar, não sei. Vou ver o Rick, no almoço. Ainda combinamos de nos encontrar hoje. Depois te conto.


             A porta do elevador deslizou de par em par enquanto subiam, preparando-se para as surpresas que ainda lhes deveria ter reservado aquele dia.
                   E para Meg eram muitas. A começar pelo jeito das pessoas. Parecia que a festa havia desfeito alguma impossibilidade no lidar entre elas e as moças exibiam uma autenticidade nova, mais capaz de expressão e compreensão. Estavam álacres, falando todas ao mesmo tempo, havia um certo alvoroço. Um repórter havia sumido ao sair no encalço de um diretor de cinema que também ninguém sabia onde estava.

               Havia sido combinado  um encontro na hora do almoço, entre as meninas do departamento financeiro. Iriam todas juntas comprar itens constantes na relação que Mirtes fizera circular. Ela iria se casar em Setembro e estavam preparando o seu chá de cozinha. Apenas Jane almoçaria com Mirtes enquanto as outras fariam as compras em uma grande loja de departamentos próxima.


-          Imaginem a Mirtes casada!


                 Brincava  Jaqueline, provocativa.


-          Depois do jantar, na sala, vendo novela com o marido.


             Por algum motivo aquilo pareceu hilariante. Rosália e Jane, Cristina, Maria Elizabeth e Giovanna, assim como a própria Meg, riram a valer. Giovanna, a voz grave propositadamente fazendo-se muito doce e persuasiva, insinuou:


-          Pois é, lar doce lar, nosso cantinho, e eu resolvo visitar o casal, ficar para jantar e, como ficou tarde, até o dia seguinte... Aí eu sento pertinho do marido da Mirtes, ponho um short curtézimo, colante-arroxante, perfume de lavanda, cabelo molhado...


                    As meninas riram ainda mais. Mirtes ruborizada, consciente de que tudo não passava de brincadeira, não se sentia por isso menos na berlinda, incomodando-se mais por ser tímida e não estar acostumada a ser o centro das atenções. Ficou calada. Não sabia o que dizer. Estava também de certo modo consciente de que aquilo era uma espécie de homenagem. As amigas brindavam o acontecimento feliz.
             O ar  tornou-se manso, a quentura da estação anulada pelo sistema silencioso de refrigeração. Jaqueline aproximou-se de Meg.


-          Vamos almoçar no “Galeto”.


-          Depois das compras?


                  Meg perguntou enquanto somava os valores de uma pilha de contas a pagar.


-          Não. Vamos almoçar, eu e você, as garotas resolvem o lance das compras.


             Meg encarou-a.


-          Por quê? Eu ainda não comprei o presente da Mirtes...


-          A gente fala com a Giovanna, ela compra o que a gente escolher da lista para dar para a Mirtes. Eu descobri uma coisa.


-          O que foi? – Meg  compreendeu que Jaqueline tinha algo mais em mente.


-          O Romão e o Nelsinho almoçam no “Galeto”.


             Meg pensou em negar o convite de Jaqueline. Pensou em Leonardo, na noite de sábado em que estiveram  tão juntos... Ele ainda não havia ligado e Meg pensou se ele o faria alguma vez, realmente. Na dúvida, a amiga impunha o imperativo de acompanhá-la, afinal era um hábito almoçar em companhia de Jaqueline. A lembrança de Nelsinho ressurgiu. O que havia sentido por ele cabia  já muito mais na forma dessa lembrança, como passado, do que na atualidade de algo sendo postulado agora. Leonardo sim, era o presente. Ou devia ser, se ele ligasse, se tornassem a se ver. Mas, paradoxalmente, era Nelsinho que estava ali, no convite de Jaqueline, no almoço no “Galeto”.
                Anuiu. Não havia nada demais em fazê-lo, tampouco, pensou. Ao mesmo tempo perguntava-se como seria ver Nelsinho agora. Retomou ao somatório das notas à sua frente. No íntimo a idéia do almoço a excitava um pouco.
               Assim agora caminhavam naquele sol escaldante, sem falar, um pouco devido ao esforço, um pouco por causa da ansiedade. Porque aquilo era tão importante? A pergunta fugaz passou por sua mente quase sem deixar nenhum registro. O nervosismo de Jaqueline era óbvio, concentrava-se no suor da face, no brilho intenso do olhar. Meg sentia-se contagiar pela expectativa do encontro.

                Por que não comentava sobre Leonardo, agora, com Jaqueline? A duplicidade era-lhe algo familiar. À época de seu relacionamento com Humberto sentia-se dividida entre o mundo fechado, no qual todos os aspectos da sociedade e dos seres humanos ressoava sem propriamente entrar, que era o casamento, e o mundo verdadeiro, que havia sido o colégio e ao amigos do bairro. Agora era algo novamente assim, caminhando junto com Jaqueline, sentindo que havia afinal o seu mundo em casa constituindo-se com Rui, com aquilo que ela mesma era, e em que Leonardo poderia, de algum modo estar, naquela ligação nova, tênue, mas consistente em seus sentimentos. No entanto, aqui estava no exterior do ser, no universo impessoal que era o de Jaqueline, de Nelsinho e dela mesmo enquanto aquela que caminhava, indo ao encontro...
               Por que era-lhe vedado  interconectar-se? Bastava contar a Jaqueline sobre Leonardo e a dualidade, a duplicidade, teria se desfeito. Mas Jaqueline agora era um ser de pedra e metal, caminhando inteiramente tomada pela resolução do encontro e Meg sabia que ela não ouviria ou que suas palavras soariam de forma inteiramente inapropriada.


-          Encontrei um cara, no sábado...


           Ela teimou, informando a amiga ou talvez apenas para si mesma. Como se emergindo de um sonho, Jaqueline pronunciou lentamente uma pergunta monossilábica:


-          E...?


-          Nós ficamos.


           O restaurante interceptou o caminho, súbito e onipresente.


-          Eles já chegaram – A voz de Jaqueline, cristalina,  cheia de determinação, não ocultava um certo tremor entusiástico, como se ela amasse o perigo e a perspectiva, tão incerta do lance, só pudesse nela despertar a excitação.


-          Lá está o carro do Nelsinho – Falou, como se completasse um raciocínio. Meg avistou o pequeno veículo cor de caramelo. As garotas da revista costumavam brincar com o fato do carro dele ser tão pequeno enquanto ele estava tão gordo. “Como é que vai caber o óculos?”, riam.


             O fato de Jaqueline parecer ignorar completamente o assunto de sábado à noite de algum modo a acalmou, como uma confirmação. Então era mesmo assim, os mundos irredutíveis não se tocavam. Contudo a projeção das sombras se interpenetrava nela e agora estava, como já havia estado àquela outra vez, entre os mundos, casualmente vagando... De fato Meg e Jaqueline titubeavam  entre os fregueses do restaurante assentados frente às suas iguarias, pratos, copos e talheres, conversando enquanto aparentemente procuravam um lugar.
             Na verdade Jaqueline manobrava de modo a serem vistas por Romão e Nelsinho que efetivamente as saudavam. Elas se aproximaram, Jaqueline sorrindo envolta em um halo brilhante de juventude e alegria quase infantil como que devido simplesmente a eles estarem ali conforme ela havia suposto, desfrutando assim, como que de um brinquedo, da pura justaposição de um fato a uma idéia.
             Meg  os olhou de relance, Nelsinho sorriu, Romão parecendo incrivelmente forte, os cabelos escuros, a pele morena, sobressaindo do terno sob medida. Jaqueline avançava agilmente como se a saudação discreta equivalesse a um convite. Meg sentiu uma estranha comoção. A amiga arriscava tudo naquele momento exato.
             Porque poderia não ser verdadeiramente um convite e se aproximar não equivaler a ganhar um espaço junto a eles. A aparência de Jaqueline, avançando, era-lhe agora um arquétipo de fragilidade, um ser extremamente necessitado de proteção no auge de sua juventude e inocência. Procurou a sua face original de velha, em um ato quase reflexo, naquele meio instante, como se assim pudesse amparar Jaqueline. No entanto, para sua completa surpresa, o que surgiu nela mesma, como aquilo que originalmente ela era agora, foi uma menina, alguém inteiramente presente, alguém sem passado, sem duplicidade, uma menina muito nova, uma criança, quase, que olhava tudo a partir de uma perspectiva positiva, definida, possuindo uma vibração, uma certeza interior conclusiva e inabalável.

            A Meg-menina se acercou, junto com Jaqueline, a quem havia transformado em alguém forte o bastante para vencer qualquer barreira. De repente Meg deu-se conta de que estava almoçando com Nelsinho, Jaqueline e Romão. Tudo era eivado de naturalidade e graça. Meg recordou a sensação dúplice que havia experimentado momentos antes mas algo havia se acrescentado. Sabia agora que não amava Humberto, que não havia mundo à-parte, que ela estava ali, algo da menina comunicando-lhe uma sensação de ser irredutivelmente ela mesma – independente de todos os mundos possíveis.
                  Pensou em Leonardo mas aquela idéia postava-se em alguma amplidão longínqua. Nelsinho estava ali, sorria-lhe, falava-lhe. Meg correspondeu à intenção que animava o lugar inteiro como uma interconexão entre as pessoas, possuindo-as por dentro em um mesmo élan que as formava em amálgamas, grupos, povos, universos... Não havia separação e Meg estava no meio, junto aos seres, na familiaridade.


-          Então, Meg, parece que você tem preferido ir de ônibus?


         Nelsinho perguntou, aproveitando a pausa de Romão entre uma e outra piada. Meg não soube o que responder e demorou para encontrar as palavras.


-          Pois é... Pausa nas horas extras. – Sorriu. Nelsinho, amável, inclinava-se para ela de um modo  provocante, novo. Ele retribuiu o sorriso olhando-a expressivamente como a sugerir algo que não estava necessariamente implícito na mera troca de palavras, o silêncio servindo como um meio mais eficaz de compreensão.
                         Meg não esperava tamanha receptividade. Afinal, dera-se por tarefa esquecê-lo. A lembrança de Leonardo era algo vago, tremulando à distância. No instante em que emergiu com mais força, devido ao esforço consciente suscitado pela sua desconfiança perante a atitude de Nelsinho, que ela não sabia com certeza se deveria mesmo ser interpretada como um avanço ou se estava condicionada apenas à situação excitante criada por Jaqueline, naquele instante o que a idéia de Leonardo expressava era a mágoa que Meg sentia por ele não ter deixado combinado um novo encontro nem ter telefonado até então. Nelsinho prosseguiu:


- Hoje tenho uma folguinha à tarde e vou para casa mais ou menos no mesmo horário que você, te encontro no mesmo lugar.


Não passava pela mente dele que ela pudesse ter outros planos e Meg não sabia como responder que simplesmente não estava indo para o mesmo lugar. De repente qualquer negativa parecia-lhe conexa à confissão de que mentira sempre, de que na realidade não era ela mas a irmã que morava no bairro dele. Romão e Jaqueline se levantavam agora.


-          Vamos tomar café no ‘Izaac’s”. Vocês vêm? – Perguntou  Romão. Meg os viu juntos, um par colorido e esfuziante, o aspecto vigoroso, energético, ressaltando de sua juventude e brilho.


-          Justamente agora tenho que receber um fornecedor. – Nelsinho respondeu, sorrindo. A verdade era que Romão e Jaqueline pareciam, a despeito do convite, preferir ficar a sós. Nelsinho voltou-se então para Meg enquanto eles se afastavam:


-          Esses dois ainda vão dar o que falar... – Comentou, entre crítico e entusiasmado. Meg compreendeu o que ele queria dizer. Nelsinho dava assim a entender que temia o escândalo ainda que não desaprovasse o ato mesmo pelo qual Romão e Jaqueline se uniam envolvendo-se como homem e mulher. Meg pensou que isso afinal revelava algo sobre o próprio Nelsinho. Se ele não desaprovava o amigo, se ele sorria, agora, tão sedutor, então o que parecia fora de dúvida era que ele não estava mais tão inaccessível a ela como lhe parecera no início.


             O “Galeto” era um lugar comercial, sem os adornos comumente utilizados para disfarçar esta característica. Mas a comida, muito saborosa, a limpeza e sobriedade atraíam uma clientela variada composta por pessoas que resolviam seus negócios no centro e funcionários que trabalhavam em firmas que não possuíam refeitórios.
                Meg e as amigas costumavam almoçar no restaurante da revista que fornecia um cardápio razoável por um preço menor. No entanto Nelsinho viera ao “Galeto” por influência de Romão que sempre costumava apresentar uma inovação em relação ao comportamento habitual das pessoas que o cercavam classificando o comum como o medíocre, criticando todos os conformistas, usando roupas caríssimas em combinações elegantes não-convencionais e agora saindo com um menina de dezoito anos apesar de sua mulher e seus dois filhos pacientemente em casa, esperando.
              Nelsinho conferia a conta e verificava que Romão havia deixado a despesa sob sua responsabilidade, assim como a de Jaqueline. Ajuntou algumas notas enquanto se erguia, em uníssono com Meg, um silêncio novo pesando entre os dois como uma certeza, uma positividade que não estava ali anteriormente,  tangível como um objeto, uma coisa que os impelia. Algo estava para ocorrer entre eles e não sabiam a quem havia pertencido a decisão de que aquilo afinal ocorreria. Eram ambos reféns do desejo, uma força que os determinava a agir ainda que os escrúpulos não houvessem sido contornados.
           Curvavam-se  a alguma ordem sempiterna e aceitavam a contingência de se encontrar à tarde no ponto do ônibus. Como em um sonho Meg se viu entrando no prédio da revista enquanto ele se esquivava, alegando precisar pegar algo que havia deixado no carro, Meg compreendendo que Nelsinho procurava evitar que os colegas os vissem juntos naquele momento em que aquilo, o que quer que fosse ora tão real entre eles, estava tão fácil a qualquer um perceber.





IX –


       A tarde semelhara um caos completo. As meninas irradiavam o fulgor, superexcitadas pela aventura conjunta das compras do chá de cozinha de Mirtes na loja de departamentos. Jaqueline deixava fluir sobre Meg o turbilhão de palavras que traduzia-lhe a revolução íntima.


-          O Romão me cantou explicitamente, Meg. Imagina, aquele homem sussurrando no meu ouvido “te quero... te quero...” Pois foi assim mesmo, ele só não me beijou porque a gente estava em público. Sabe como é, a gente tem que maneirar. Mas combinamos para amanhã no almoço. Vamos a um lugar que só ele conhece...


                Jaqueline, os olhos brilhando de expectativa, encarou-a.:


-          E você com o Nelsinho, como é que foi?


          Meg pousou o olhar na amiga. Sentia-se algo constrangida. Ouviu as outras moças rindo alto, sem que elas soubessem porque. O ambiente agitado reverberava paradoxalmente em seu silêncio interior, provocado pela avalanche de impulsos contraditórios, como um contraponto benéfico.


-          Ah, ótimo. – Comentou com ironia. – Vamos nos encontrar hoje para a costumeira carona.


            Jaqueline espantou-se compreendendo imediatamente a extensão do problema:


-          E você vai ter que ir para a casa da sua irmã? E o Rui?


-          Pois é! Se eu não conseguir convencer a minha mãe a ir escola eu não sei o que vou dizer para o Nelsinho... Na verdade... – Meg queria dizer que na verdade não sabia como se desvencilhar do encontro mas era o que preferia. Pensava em Leonardo. Queria tanto vê-lo e que o que houvera entre eles se perpetuasse, sem se resumir apenas àquela noite de sábado... No entanto o que havia sentido anteriormente por Nelsinho ecoava na incerteza suscitada pelo silêncio de Leonardo. Ele não havia ligado no domingo nem naquela segunda pela manhã. Nelsinho por sua vez se insinuara de um modo tão irrecusável... Como se assegurando-se agora de algo que lhes havia sido oferecido antes, tantas vezes quanto as que Meg o havia acompanhado no trajeto cotidiano.


-          Liga para a sua mãe, Meg. – Jaqueline sugeriu, com certa urgência. Algo nela havia captado a hesitação da amiga e esforçava-se por levá-la a agir. Era uma força atuando em favor de Nelsinho e Meg estava consciente disso. Olhou para o aparelho telefônico. Seria tão bom se Leonardo ligasse naquele momento exato... Mas nada aconteceu e ela se pôs a implorar à mãe que cuidasse de Rui por aquela noite inventando mil desculpas para justificar o fato de que iria ficar com Rafaela até o dia seguinte.


            Uma nova onda de exuberância cresceu no ambiente enquanto alguém transmitia a informação de que Nelly e Rick haviam brigado no almoço, no restaurante da revista, e que naquele exato instante conversavam seriamente no carro do diretor em frente ao prédio. Ninguém conseguia se concentrar em tarefa alguma até que a própria Nelly surgiu com um sorriso superior de resignação e anunciou:


-          Assunto encerrado. Terminamos tudo completamente de vez.- Consternadas elas se deixaram ficar nos assentos, colhidas ali entre os papéis, os aparelhos de xerox, telefones, computadores... Nelly  afastou-se dirigindo-se à  correspondência.


-          Que nada! Depois eles se encontram, conversam, se entendem... – falou Giovanna, enxugando uma lágrima furtiva e respirando fundo.


-          Não é possível tudo ter acabado simplesmente, assim...- Acrescentou Mirtes, encarando o vazio, absorta, atordoada. Tornaram-se repentinamente silenciosas. A refrigeração as confortava um pouco, a presença de todas as outras enfileirando-se como um contraforte de apoio em torno de cada uma. As horas escoaram e Meg sentia a aproximação dos segundos como um  lembrete, uma oferta, uma acusação, tudo ao mesmo tempo reverberando à expectativa do encontro com Nelsinho.     


            Finalmente o momento havia chegado. O batom no espelho do banheiro feminino, o perfume, Jaqueline olhando-a cheia de ansiosa animação e Meg deixou o prédio caminhando silenciosamente até o ponto de ônibus.
             A tarde lançava uma reverberação tranqüila no céu, naquela sugestão de eternidade, como se fosse durar para sempre. Tudo era ouro e azul, uma aragem envolvia as coisas pousando macia por sobre os seus ombros, os cabelos longos e escuros tremulando enquanto caminhava. Nelsinho esperava. Ela entrou no automóvel e a velocidade os reuniu em um mesmo balanço como se um pedaço do universo se houvesse destacado, dobrando-se exclusivamente para eles.


-          Você gosta da Barra?


            Obviamente ele se referia  a uma praia famosa da cidade ainda que um tanto longínqua.


-          Gosto, é um lugar muito bonito.


            Meg respondeu, ainda sentindo-se constrangida devido à intensidade nova que havia se instalado entre eles.


-   Vamos até lá, agora, beber um chop? – Nelsinho    convidou com inesperada naturalidade.


-          Tudo bem. – Meg falou, soltando-se de repente. Recostou a cabeça no descanso da poltrona. Agora por algum motivo abandonava-se. Não se importava mais. Nelly e Rick haviam terminado. Leonardo não telefonara. Rui devia estar  esperando por ela à saída da escola. Rafaela nem cogitava que a irmã estava a caminho da sua casa. Nelsinho guiava o automóvel contando casos do escritório.


                 A paisagem flexível deslizava pelas laterais gastando a tarde, esgotando o tempo de se arrepender. Tudo agora consistia em deixar-se levar. Através do vidro o sol bombardeava a sua maravilhosa luz criando franjas por entre as nuvens. Logo a rua mudou e a estrada surgiu, imensa, amplidão absoluta estendendo-se no infinito.
                     Depois veio a visão do mar. Nelsinho estacionou perto de um quiosque. Sorveram o chop gelado por entre risadas e provocações mútuas, de brincadeira. Ele guiou novamente até um novo lugar, mais isolado. Estavam a sós.

          Meg contemplou o por -do –sol. Nelsinho começou a beijá-la, quase que por acaso e acariciavam-se cada vez mais intensamente. Um ruído os despertou do transe. Outro carro com casal estacionava, não muito longe deles. A expressão de Nelsinho era uma nuvem carregada de puro desejo. Meg deixou-se contagiar pelo ardor daquele homem a quem havia desejado tanto. Mas agora o que sentia era apenas um eco da solicitação dele e ela apressou-se, aproveitando a oportunidade da chegada do outro casal, a interromper aquele início de entrega que lhe soou então de certo modo falsa, algo lançado no meio de um sem-número de contra-sensos, talvez assim como ela mesma era, alguém sem poltrona e chá das cinco, hora marcada, não, ela era o caos dos ônibus lotados de manhã, sem saber porque estava aqui, a outra, o fortuito, o acaso no meio das ondas do mar.


-          Nelsinho... – Ela ia dizer que o lugar era impróprio para qualquer coisa mais. Logo percebeu que não era necessário. Nelsinho beijou-a novamente, agora apenas carinhoso e controlado, ajeitando-se em seguida, alisando o cabelo, ajeitando os  óculos  e abotoando a camisa sobre o ventre volumoso. Suspirou encarando-a, o olhar travesso, buscando cumplicidade. Ela sorriu para ele. Por um momento Meg esqueceu as suas reservas, fundindo-se  ao homem por meio do sorriso. Logo depois pensou que não sabia, absolutamente, onde é que tudo aquilo iria afinal conduzir. Descobriu então que não lhe pertencia. Não eram um do outro, ele era um ser sem suportes de apoio. A sensação era tão forte que a fez experimentar os movimentos do carro, manobrando de volta à estrada, como se viessem de si mesma.      


                     As árvores na janela enfileiraram-se novamente e ficaram para trás. Meg controlou as lágrimas. Sabia que jamais estaria novamente ali com ele. Nelsinho não se dera conta da transição nos sentimentos dela.


-          Amanhã... Não, amanhã, tenho que levar o mais novo ao médico... Quarta ... Quinta-feira! Isso, quinta – feira. A gente se encontra  depois do expediente. Podemos ir a um motel.


                      Ele sugeriu e ela pensou em como ele contornaria as coisas em casa. Sacudiu a cabeça em um ato reflexo. Ela não o faria de modo algum.
                          Olhou-o de soslaio. Pensou em anunciar sua decisão mas ele estava concentrado agora no trânsito. Ela soube que não precisava dizer nada, ele descobriria de algum modo. A julgar pelo semblante de Nelsinho naquele momento poderia-se até pensar que ele nem mesmo se recordava do que dissera há alguns instantes.

                      Meg julgou que afinal valia bem aquela experiência. Toda a sua dúvida se dissipara, ela  tinha plena clareza em sua mente. Não amava Nelsinho. Queria que ele fosse feliz, estimava-o como a um amigo. A noite se jogava sobre o mundo. Meg se apercebeu  de que estava em frente à casa de Rafaela.


-          A gente se vê! – Nelsinho acenou. Ela sorriu como em um adeus. Tocou a campainha à porta de sua irmã. O rosto de Rafaela surgiu, estranhamente alterado.
Meg! – Exclamou com uma nota de surpresa nitidamente misturada à decepção.              





        X –


-          Oi, Raf, tudo bem? – A expressão de Rafaela não sugeria tranqüilidade e as duas se mantiveram por alguns minutos paradas no vestíbulo, entreolhando-se. Meg teve a impressão inquietante de estarem-se medindo uma à outra, paradas em uma espécie de umbral fora do tempo. Logo Rafaela se moveu, tacitamente manobrando de modo que Meg a acompanhasse.


                O cheiro característico do lugar saudou-a como uma voz amena que não pertencia a ninguém. Era um misto de água de colônia, xampoo e folhas de eucalipto, tudo envolvido a um ressaibo de fumaça tão longínquo a ponto de Meg duvidar de seus sentidos. Não sabia porque gostava tanto daquele lugar mesmo não sendo recebida por Rafaela de um  modo que a fizesse sentir que era bem-vinda, efetivamente.
                      No entanto agora o nervosismo da irmã era uma coisa palpável, um halo pousado sobre os móveis produzindo um efeito bizarro. Rafaela sentou-se ao sofá como se deixasse o corpo se depositar, impotente, sobre a superfície aveludada. Acendeu um cigarro enquanto desabafava.


-          Meg, não agüento mais! O Mauro saiu de casa hoje de manhã e até agora não voltou!Não sei o que fazer... – Ela jogou a cabeça para trás, os olhos fitando o teto, o rosto cheio de apreensão.


-          Calma, Rafaela. Onde é que ele foi? – Meg, sentando-se junto a ela procurava controlar-lhe o ânimo extremamente exaltado.


-          Ele saiu para procurar emprego. – Rafaela respondeu. – Mas ele sempre volta na hora do almoço ou então telefona. – Continuou. Ela aproximou o rosto de modo que  Meg reparou em sua expressão, tornando-se mais ansiosa à medida em que sua voz diminuía de intensidade:


-          Nós brigamos ontem à noite...


           Meg interveio:


-          Ora Rafaela, isso não é novidade. Vocês brigam a toda hora, vivem discutindo. Fica tranqüila, daqui a pouco ele chega...


-          Mas desta vez foi muito sério, Meg. Estou tão nervosa... – Rafaela começou a chorar e Meg sentiu-se atônita. Não sabia lidar com a irmã naquele estado.


               Rafaela sempre fizera questão de mostrar-se ousada, desafiadora, segura de si. Agora parecia dependente e frágil. Meg pensou no que dizer ou fazer para que ela se acalmasse. A irmã parecia à beira de um colapso nervoso. No entanto ela recomeçou a confessar-se, por entre as lágrimas.


-          Nós brigamos por causa de dinheiro. Eu queria que o Mauro pegasse um bico que apareceu e arranjasse uma grana extra. Mas ele acha que isso é perda de tempo, que tudo o que é preciso é continuar procurando um trabalho regular. Eu gritei com ele... Estou tão sensível por causa do bebê... E preocupada... Agora com a mudança vamos economizar o aluguel e o dinheiro que ele recebe do pai tem dado para segurar as pontas mas mesmo assim não vai ser o bastante quando o bebê nascer. E a mudança vai custar algum, também... Eu não devia ter gritado  tanto com ele... Estou sem saber o que fazer.


                Ela havia sustado o choro e agora apenas falava, a voz escoando por entre exalações de fumo. Meg porém estava realmente surpresa.


-          Mudança? Vocês vão mudar daqui? – A irmã devolveu-lhe a expressão de espanto.


-          Ué, você não está sabendo?


-          Não sabia – Meg comentou – E para onde vocês estão indo?  - Por um momento pensou que algo impossível estava em marcha.


-          Não é possível que você não saiba, Meg. – Rafaela, impaciente, meneava a cabeça.


-          O que é que está havendo, Rafaela?


                  Forçosamente havia algo de fundamental envolvido em tudo aquilo, pelo modo como Rafaela a observava, incrédula perante a sua ignorância. Uma simples mudança de endereço não poderia acarretar tamanha perplexidade por ter estado até então oculto.


-          Nós vamos morar com você!


-          O quê? Mas não cabe, Rafaela, qualquer pessoa pode ver que não dá mais nada naquele cubículo! – A imagem da pequena casa, praticamente uma kitchinete, perpassou em sua mente. A mãe ocupava o quarto, apenas meio singularizado em relação à sala por uma espécie de cortina feita de plástico encorpado. Não caberia ali nem mesmo um armário ainda que fosse de solteiro. Ela mesma, Meg, e Rui, ocupavam o sofá dobrável da sala que à noite se transformava em um tipo de cama de casal que tomava todo o espaço restante. Como seria exeqüível que a irmã pensasse em se instalar, mais o marido e o filho que estava para nascer, em tais condições?


                    Meg observou que Rafaela a observava agora, detidamente.


-          Então você não sabe... – Repetiu, como que para si mesma, certificando-se de algo com que não havia contado.


                   Meg não chegou a tornar a indagar sobre o que afinal era aquilo de que tanto deveria estar ciente.


-          A mamãe vai para os Estados Unidos com o Gregório. – Após uma pausa, acrescentou – Eu e o Mauro vamos ficar com o quarto.


            Meg se pôs em pé como se uma explosão a impelisse. Como é que aquilo estava acontecendo? As informações avançavam como ondas que a entorpeciam.


-          Não é verdade! – Protestou quase gritando. Rafaela a observava ainda mas agora uma expressão estranha alterava-lhe as feições. A reação emocional da irmã pareceu irritá-la. Mas não disse nada por alguns instantes.


                 Meg sentia-se duplamente irada. Sua mãe não podia de modo algum ter tomado uma decisão daquelas sem tê-la consultado ou ao menos prevenido. Por que resolvera tudo com a irmã sem que ela soubesse? Por que ceder o quarto à Rafaela, obrigando-a a dividir um espaço já exíguo com Mauro, seu cunhado, certo, mas um homem. A situação era extremamente constrangedora mas a mágoa, a antiga sensação de inferioridade relacionada à impressão de que a mãe preferia Rafaela, eram ainda mais perturbadores.


-          Não pode ser... – Ela balbuciava. Sentou-se novamente, em silêncio.


-          Por que a mamãe não me disse nada?


-          É isso... Você está com ciúmes. – Rafaela concluiu, esmagando o que restava do cigarro no cinzeiro e encarando a irmã com a fronte erguida de certo modo zombeteiro mas com um brilho cheio de censura no olhar.


-          Não pode ser. Não, Rafaela, não daria certo, você e o Mauro lá em casa, ficaria muito apertado, a mamãe é uma pessoa, vocês serão três quando o bebê nascer...


             Foi a vez de Rafaela se por de pé com indignação. Mas ela o fez quase lentamente. Seus gestos eram frios, pausados. Ela se pôs no meio da sala.


       -   Agora sim, chegamos ao que interessa. Você está se lixando para a mamãe, se ela vai ou fica, não te importa, mas a casa você quer toda para você, só para você!


                   Meg sustentou o olhar dela, duro, acusador. Desde que o pai morrera a mãe havia praticamente queimado tudo o que ele deixara com Rafaela. Mauro recebia um auxílio constante do pai mas mil gastos surgiam e a mãe de Meg sustentava tudo. Agora Rafaela a acusava de egoísmo e a injustiça pareceu-lhe intolerável.


-          Não tem nada a ver! – Ela procurava as palavras certas para traduzir o que julgava um direito seu mas algo na atitude de Rafaela a tolhia. Seus lábios tremiam.


-          Qual é Meg? É isso mesmo! Você só pensa em você, no seu umbigo. Não quer saber nem do seu sobrinho, um inocente que vai nascer. Pensa que eu não sei que você tem o maior grilo comigo porque a mamãe me prefere? Isso está na cara!


            Meg levou a mão a boca em um gesto de defesa. Como a irmã podia falar assim?


            Rafaela estava quase fora de si. A gravidez, as preocupações, o atraso de Mauro, o seu próprio temperamento, tudo convergia para fazê-la sentir como se estivesse enlouquecendo. Não tinha como se controlar agora. Nutria também, desde sempre, uma rivalidade latente em relação à Meg. Considerava-a ora fraca, ora esnobe. Pensava que Meg estava sempre se prevalecendo do fato de ser a filha legítima. Aquela idéia a exasperava. Porque teria Meg algum direito a mais do que ela mesma? Sentia-se superior à irmã.
                       Nas  melhores ocasiões esta sensação se abrandava em uma forma de índole protetora. Meg era um pouco mais nova, a compleição delgada, a índole algo hesitante, insegura. Rafaela se impunha com seus modos severos, autoritários. Jamais revelara os próprios sentimentos ainda que ocasionalmente manifestasse uma tendência incoercível para provocá-la aproveitando-se de sua fragilidade aparente. Agora porém estava fora de qualquer limitação passível de auto-impor-se. Assim não pensava no que dizia e o seu furor a levava inexoravelmente a avançar na selvageria da invasão sobre um território que até então estivera proibido.


-          Você está louca, Rafaela! – Meg defendeu-se. – Por que é que a mamãe iria te preferir?


-          Por quê? Por que eu sou a filha adotiva, é por isso que você pergunta? –  Rafaela retrucou. Meg esperou que as palavras lhe tornassem aos lábios, solvidas em meio à tempestade que se desencadeava no seu íntimo.


                Jamais se fizera explícita sobre aquilo. Parecia-lhe indigno, mesmo quando Rafaela provocava alguma de suas discussões ou quando lhe fazia sentir diminuída por algum dos seus comentários mordazes, usar o fato dela não ser realmente sua irmã. Assim permaneceu silenciosa. Fervia de revolta mas não sabia como revidar, uma vez que se interditava aquele meio.
                     A noite pesava entre elas como uma penugem desconfortável que as irritava ainda mais levando as antigas desavenças a um paroxismo.


-          Vai, Meg, fala logo! Não é isso que você pensa? -  Rafaela estava agora literalmente gritando, a cabeça projetada ameaçadoramente à frente de Meg. Algo rompeu a sua determinação de tantos anos e Meg finalmente desabafou:


-          É isso mesmo, Rafaela, você pensa que eu tenho ciúmes de você mas por que a mamãe iria te preferir? Você não é filha dela! Eu penso é que ela tem pena de você, por isso te superprotege. – Meg sentiu como se a houvesse esbofeteado. Mas inesperadamente Rafaela começou a rir.


-          Como você é idiota, Meg. A mamãe me prefere, sim. Você sabe disso. Você é complexada por causa disso.


-          Não me ofenda, Rafaela! Não adianta, eu não acredito no que você fala, complexada é você, por isso é que fica dizendo essas besteiras.


-          É mesmo? Então você pensa que ela deve gostar mais de você...


                   Meg, que tinha se posto em pé de modo a se livrar do peso que a estatura de Rafaela jogava sobre si, voltou-se, pegando a bolsa que deixara jogada sobre o sofá. Tudo lhe pareceu esgotado, perdido para sempre. Jamais voltaria àquele aposento.


                    Rafaela percebeu sua intenção. Furiosa, barro-lhe o caminho até a porta:


-          Pois saiba que ela me ama muito mais do que a você! E sabe de uma coisa? Ela me ama por que eu sou a filha do amor e você... Você é só a filha do dinheiro!


-          O quê? – Meg não conseguia alcançar o sentido daquela enigmática sentença. Algo singular se processava em Rafaela. Em seu íntimo uma voz se agitava, chamando-a à razão, implorando que se detivesse a tempo. Mas desde que a gravidez havia avançado a partir de uma certa fase sentia-se estranha, um ímpeto ardente assenhorava-se dela, por vezes incontrolável, selvagem, fazendo transbordar toda a agressividade de que era capaz, arrastando suas decisões mais escrupulosas a que sempre se obrigara a respeitar.


             Assim não recuou e finalmente liberou aquilo que soubera sempre embora  houvesse prometido jamais revelar. Meg, por sua vez, inicialmente considerou com seriedade a hipótese de Rafaela ter simplesmente enlouquecido. Mas a tensão acumulada atuou e ela se viu dizendo:


-          Você não sabe o que está falando! Como pode dizer que é filha do amor se você nem sabe quem são seus pais, nem de onde você veio...


-          É aí que você se engana, Meg! – Rafaela estreitou o olhar, espreitando-a por entre as pálpebras que a ira, saboreando o momento, fizera alinhar como duas riscas finas e cortantes.


-          Eu sei quem é meu pai. Ele foi o homem que a mamãe amou. O homem que ela queria ter. Mas ele precisou ficar um tempo fora por causa de uns problemas. O seu  pai aproveitou o lance e a mamãe pensou que o meu pai tinha esquecido dela. Sem querer engravidou...


                Rafaela fez uma pausa, perscrutando o semblante trêmulo de Meg alterar-se progressivamente à medida  que ela continuava.


-          Mas ele voltou. A mamãe estava casada, grávida de você. Ele veio comigo. Eu nasci de um envolvimento dele no exterior. A mamãe nunca quis me contar onde, ela acha que não adianta. Ele voltou muito doente. Morreu de tuberculose. E eu fiquei para a mamãe criar. Mas você... A mamãe não queria você. E você acha que se ela tivesse como nos sustentar ela iria ficar a vida toda aturando o seu pai? Ela não gostava dele e todo mundo sabe disso. Ela ficou com ele por causa de você, por causa do dinheiro!


                Meg a empurrou violentamente. Rafaela cambaleou, por um momento, saindo da frente de Meg e liberando assim o caminho. Meg se precipitou na direção da porta, enlouquecida pelo que Rafaela dissera.
               Antes que alcançasse a maçaneta a porta se abriu. Mauro entrou na sala, um jeito furtivo, como que farejando o ambiente a ver se estava tudo bem. Estacou ao perceber que algo inusitado devia estar ocorrendo. Rafaela voltara à posição ereta, o rosto ainda dardejando o ódio, enquanto Meg passava por ele avançando e saindo da casa, fechando a porta com estrondo.



              

XI –


             O vento frio da noite se estendendo em uma inclinação reta agitou seus cabelos desordenando-os à volta do rosto contorcido pela angústia, as lágrimas livres, incontroláveis, secando ao contato. Caminhando devagar, o coração ferido, procurou recompor-se, afastando definitivamente as lágrimas com um lenço que depois voltou a guardar na bolsa.
                  A rua era calma e logo depois surgiu a avenida. Meg procurou ajeitar a aparência antes de alcançar o ponto do ônibus. Todo o seu pensamento se resumia na determinação de falar com a mãe. Havia afinal uma chance de que tudo aquilo não correspondesse à realidade, por mínima que fosse. Mas o que faria se Rafaela não estivesse mentindo?

Proibia-se de atirar-se a qualquer consideração ulterior. Tudo o que era necessário agora era só isso: precisava conversar com a mãe. No ônibus a visão das pessoas parecia irreal enquanto a revolta retrocedia como um onda fina. À luz crua e destacada o movimento dos passageiros levou-a a uma espécie de transe no qual sobressaía a imagem de uma porta a qual ela reconheceu como pertencendo à antiga casa da infância.
                 Entrou, deixando-se estar no sofá da visão. Logo percebeu-se novamente no ônibus, uma moça com cabelos longos sentando-se ao seu lado. Levantou-se pouco depois. Em casa esperou pelas vozes de Rui e da mãe. Contudo, não havia ninguém.
                Postou-se muito ereta na sala, pensando no que fazer. A urgência em solver aquela dúvida que fervia no íntimo era maior do que a simples exaustão que a aconselhava a ceder e ficar. Tomou um copo d’água, reergueu a bolsa e tornou a abandonar-se ao ar  noturno. Caminhou na direção do ponto do ônibus. Ansiava também por Rui. Pensava que tudo devia ter sido um gigantesco erro, que não devia ter se importado com a opinião de Nelsinho, se ele perceberia a mentira caso ela recusasse a carona, que deveria ter vindo com Rui da escola e as coisas estariam agora normalizadas.

Mas também havia algo que sugeria inversamente que afinal ela descobrira algo de fundamental. Se Rafaela estivesse mentindo esse algo se limitava à verdadeira natureza do caráter da irmã. Se ela não estivesse mentindo... Ecos do passado ressoavam agora como se Meg buscasse um sentido, em meio às imagens da lembrança, que pudesse levar a alguma conclusão enquanto caminhava.
                   Meg estava agora no ponto de ônibus. Havia tido a idéia de que a mãe devia estar em casa de Gregório.
                    Ele atendeu à porta após um intervalo que Meg julgou ter sido preenchido pela eventual consulta ao visor, comum em apartamentos. Assim ela estranhou vê-lo envolto apenas em uma toalha, como se estivesse acabando de sair do banho. Se ele a pudera ver por que a atendera naquelas condições?
                    No entanto ele pareceu muito à vontade, sorridente.


-          Meg, que ótima surpresa! Entre. Algum recado da sua mãe?


         Idoso, o ventre proeminente, os cabelos completamente brancos, parecia um tanto grotesco parado no meio da sala, à luz de um abajur, a toalha delineando os detalhes do seu corpo flácido.


-          Ela não está aqui, então...?


           Meg comentou, o cansaço de repente desabando sobre ela com tal ímpeto que, a despeito da repulsa, sentou-se ao sofá.


-          Não. Você veio procurá-la?


-          Isso. Pensei que ela estivesse com você.


            Gregório observou-a.


-          Quer uma água, um café?


-          Não obrigada. – Ela queria levantar e sair dali depressa. Ele porém insistiu:


-          Ora, o que é isso, faz tempo que você não vem aqui, eu estava mesmo querendo conversar umas coisas com você. Aceite um cafezinho enquanto eu visto um short... – Ele falava movimentando-se de modo que por fim suas palavras ressoavam da cozinha pois ele despejava agora jatos fumegantes da garrafa térmica em uma pequena   xícara, depositando-a logo a seguir em uma bandeja. Meg sorveu o líquido enquanto ele desaparecia novamente após ligar a luz principal da sala.


              Logo retornou sentando-se junto à Meg que de certa forma sentia-se agradecida pelo café que a revigorava.


-          E então, o que tem feito?


           Meg considerou a pergunta. O que vinha efetivamente fazendo?


-          Nada. Trabalho, só isso.


             Respondeu, um pouco também para si mesma. No entanto preocupava-se. Precisava ver Rui e conversar com a mãe. Onde estaria ela? Talvez Gregório soubesse.


-          Você sabe da minha mãe?  Ela não estava em casa quando cheguei da revista.


              Gregório sorriu, um jeito insinuante de franzir os lábios que o fazia parecer um pouco mais jovem.


-          Não sei. Às vezes penso que sua mãe não se importa muito em me dar satisfações...


           Ele se queixou com aparente volubilidade. Meg não sabia se ele queria que ela considerasse o comentário como uma brincadeira. Pensou então que nada mais havia para fazer ali. Depositou a xícara na mesinha fronteiriça ao sofá.


-          Bom, Gregório, obrigada pelo café. Vou nessa, tenho que achar a mamãe, ela está como Rui.


-          Espere – Ele se inclinou com surpreendente agilidade, seu torso projetando-se em movimentos que lembravam um felino.


-          Você parece cansada. – A voz era agora baixa, seca. – Porque não fica aqui hoje? Sua mãe deve estar com uma amiga, não há razão para se preocupar.- Ele estava praticamente sussurrando.


-          Ora Gregório, que idéia! Sem a minha mãe não teria muito sentido, não é?


-          Por que não? Afinal eu sou um homem, você é uma mulher... Isso é uma coisa natural...


            Meg não quis a princípio crer no que estava ouvindo. Mas logo se deu conta de que era verdade, ele realmente estava tentando seduzi-la! Levantou-se imediatamente.


-          Gregório, vamos fingir que você não disse isso. Faça o favor de abrir a porta, preciso ir agora.


             Pensou que ele iria replicar. Mas o homem idoso limitou-se a fazer o que ela sugeria. Moveu-se como se um fardo o vergasse. Meg caminhou, entre incrédula e aturdida, sentindo-se demasiadamente cansada.
                O ônibus estava quase vazio e os lugares disponíveis refletiram nela como a sombra do seu desamparo. Novamente em casa e não havia ninguém. O cansaço obrigou-a a desistir de procurar pela mãe. Após um banho rápido ela adormeceu.





XII –



        As vozes a despertaram. Quase ao mesmo tempo ouviu a mãe exortando Rui para que a deixasse dormir e o menino, não obstante, chamando:


-          Mamãe ... Olha, ela já está acordando! – Exclamou alegre, abraçando-a.


            Meg o envolveu. Amava tanto o seu filho que estar com ele, naquele momento, sustava qualquer contrariedade. Contudo, levantando-se e preparando a higiene matinal, não pôde deixar de pensar em tudo o que era preciso enfrentar.
            Olhou-se ao espelho. Seu rosto jovem lhe sorriu. Era interessante comparar o modo abstrato como as idéias se interpunham – Nelsinho que a levara a Rafaela na noite anterior. A irmã que a fizera procurar pela mãe na casa de Gregório. As coisas se anulavam, uma corrente infinita de ação e reação.
           E no entanto agora ela não sentia coisa alguma. Os lugares vazios do ônibus ainda estavam dentro dela mas haviam se rearranjado, arrastando-se, compactando-se sem abandonar a vacuidade, formando um núcleo pesado e frio, parecendo muito pequeno, absolutamente oco, inabitado, silencioso. O abissal posterior a tudo. Ela flutuava por cima das certezas, das lembranças, das tarefas por realizar. Não estava no interior das próprias evidências. Lavou o rosto, escovou os dentes, procurando a sensação, a familiaridade consigo mesma. Era um ser novo. Seus sentimentos não se prendiam ao que sabia existir, ao que sabia sobre si mesma.
             Gradualmente reincorporou-se, contudo. Sentiu que Rui a abraçava novamente, agarrando-se a suas pernas como de costume. Abraçou-o, adentrando a sala.


-          Então, conta para a mamãe, onde você esteve com a vovó?


               Conduziu o filho  à cozinha e Rui sentou-se enquanto Meg servia o desjejum.


-          Na Marlene. Ela estava com dor de barriga, a vovó deu remédio para ela, aí ela melhorou e botou o filme do homem aranha para eu ver.


-          E o que você jantou?


-          Ela me deu batata-frita com cachorro-quente.


               Rui gostava de Marlene que costumava mimá-lo de várias maneiras. Meg sorriu.


-          Que tal se vestir para ir à escola?


-          A vovó falou que não precisa, hoje já está tarde. Só amanhã que eu vou.


                 Meg beijou-o sentando-se com ele, pondo um prato de mingau de aveia à frente do menino enquanto ela mesma tomava o café da manhã. Resolveu também não ir à revista. Jamais havia faltado antes e pensava que não haveria problemas quanto a isso. Havia muito a resolver com a mãe, que neste momento estava no banho.
                Dali a pouco ela se aproximou. Rui já havia tomado o mingau e se propunha a vasculhar a caixa de brinquedos na sala. Meg aproveitou para iniciar a conversa, de modo algum fácil.


-          Oi, mãe. Estou precisando conversar com você.  – A mãe se dispunha a tomar café e olhou-a com certa relutância.


-          Meg, preste bem atenção. Não adianta pedir. Por um bom tempo eu não quero saber de pegar responsabilidade com o Rui. Estou exausta! Ontem ele pintou e bordou na casa da Marlene...


-          Mãe, não é nada disso. – Meg apresou-se a interromper o fluxo das reclamações. – Ontem eu estive com a Rafaela. É verdade que você está pensando em ir para os Estados Unidos? É verdade que você conheceu o pai da Rafaela?


                A expressão da mãe era de puro espanto. A manhã coava-se pela cozinha através do basculhante envidraçado, insinuando-se sobre o ambiente plano, estratificado, em que antigas intenções se debatiam e sobre as quais dona Ligia e Meg se detinham, perplexas.


-          Como... Como você soube do pai da Rafaela? – A mãe parecia irada, como se o seu saber lhe fosse ofensivo, mas ao mesmo tempo a calma das coisas parecendo pesar incoercível sobre seus ombros produzindo um efeito lento de resignação.


-           Rafaela te contou... Só pode ter sido.


              Meg aquiesceu sem falar.


-          Meg... – A mãe não sabia ao certo como começar.


-          - O que ela te disse? – Perguntou, por fim. Meg contou o que havia ocorrido entre ela e a irmã. Encarou a mãe, detidamente.


-          - É verdade. O pai de Rafaela foi um homem a quem amei antes de conhecer o seu pai.


-          Então você não me queria? Foi isso o que ela disse e que assim você tem preferência por ela...


              Dona Ligia meneou a cabeça estendendo o braço e envolvendo as mãos de Meg nas suas. Havia lágrimas em seus olhos.


-          Não, isso não é verdade, eu amo você, eu quis você, sim. Quando soube que estava grávida eu fiquei feliz, tinha esperança de que esqueceria o pai da Rafaela, que tudo poderia dar certo com o seu pai... Você sabe, eu tentei. Tentei assim como você e Humberto. Mas nós não havíamos sido feitos um para o outro. Isso não tem nada a ver com você. Você é minha filha e eu te amo.


          Meg abraçou-a. Queria consolar a mãe que agora derramava copiosas lágrimas.


-          Por que ele foi embora?- Perguntou, com voz terna. A mãe limpou o rosto.


-          A família dele não gostava de mim. Havia outra moça com quem esperavam que ele se casasse. Então ele brigou com os pais e resolveu ir  para o exterior, trabalhar, até haver os recursos para nos manter.


-          Por que você não o esperou?


-          A família dele me fez saber que ele havia se envolvido com alguém no país em que estava trabalhando. As cartas escassearam e eu pensei que era verdade.


-          A mãe de Rafaela... – Meg deduziu. Dona Ligia assentiu.


-          Sim. Depois eu soube que o envolvimento deles foi casual. A princípio ele supôs que não havia passado de uma aventura. Mas então ela apareceu grávida. Morreu de parto. Nessa época ele já estava doente, por isso não podia trabalhar o bastante. Ele se sentia tão culpado... Pensava que ela não havia suportado o parto porque estava fraca, não havia tido os cuidados necessários. Ele nunca chegou a amar a mãe de Rafaela.


-          Então ele voltou, trazendo a Rafaela...


-          Isso. A família dele me implorou que o fosse ver antes dele também partir. Ele me entregou a menina, um bebê de colo.


-          E o papai, ele sabia?


-           O  caso era mais ou menos notório. Mas o seu pai  quanto a isso foi muito ... correto. Aceitou adotar a menina. Nós a criamos. Por mais que não tenha boas lembranças do nosso casamento eu sempre serei grata à memória dele, por isso. Mas Meg, por favor, não creia que  eu prefira a Rafaela. Eu amo vocês igualmente, como se fossem minhas filhas, as duas...


-          Mãe você está mesmo pensando em viajar com o Gregório? – Dona Ligia assentiu. Furtivamente desviou o rosto como se sentisse um pouco o fato de não ter comentado nada com Meg antes.


-          Ontem quando você telefonou dizendo que ia à casa da Rafaela eu pensei que ela poderia comentar alguma coisa com você mas não podia supor que as coisas chegassem a esse ponto... Ela sugeriu ficar com o quarto. – Começou a falar como se justificando, mas Meg contou o que havia ocorrido em casa de Gregório. A mãe não escondeu a estupefação.


-          Mas como ele pode ter feito uma coisa dessas! Justo agora que havíamos combinado a viagem!


-          As coisas não estavam bem entre vocês? – Meg perguntou lembrando o comentário de Gregório de que dona Ligia não se importava em lhe dar satisfações.


-          Mais ou menos... Ele exigia muito de mim. Queria me controlar... Nós nos dávamos relativamente bem. Afinal ele me convidou para a viagem, por um tempo,  para fazer  experiência.


-          Você o ama?


-          Não. Eu gostava dele, queria que desse certo. Estou envelhecendo. Seria preferível não ter que ficar só. Eu me aborrecia tanto com o seu  pai... Mas agora que ele se foi eu sinto falta dele. Pelo menos o seu pai estava sempre ali, entende?


                 Meg assentiu.


-          Mas agora... isso. Não consigo entender como ele foi fazer uma coisa dessas! Acho que quis me ofender.


-          Você vai ter que desistir da viagem.


-          Claro! – dona Ligia ergueu-se, o semblante sóbrio, a decisão impelindo-a. Passou a tratar da louça. Logo acendeu o fogão colocando uma panela cheia d’água para esquentar. Meg se demorou um tanto a contemplar a chama emergindo dos queimadores redondos.


-          Rafaela não virá, então.


             Dona Ligia  continuou silenciosa. Parecia estar consciente da contrariedade a enfrentar com a filha casada, grávida, contando com a sua partida a qual porém agora não mais poderia se dar.


-          Não... – Comentou a esmo. Meg levantou-se, aproximando-se de Rui, na sala.


-          Olha mamãe... O carrinho vai ganhar a corrida! – Ela fingiu concentrar a atenção na simulação de grande prêmio que o filho conduzia cheio de entusiasmo.


              A claridade das coisas na quietude da sala a faziam pensar que se sentia livre, livre de Nelsinho, da revista, do ônibus cheio de todo dia, das amarras de tarefas puramente arbitrárias que obrigavam o corpo mas não se relacionavam à alma... E pensava que na manhã seguinte tudo aquilo seria retomado. E que teria que resolver o problema com Nelsinho pois  recusaria qualquer convite dele. Não queria mais aquela sensação de culpa rondando no íntimo. Ele era um homem casado. Deveria pensar na mulher, afinal de contas. Não deixaria que contassem com ela para continuar com a sordidez. E Leonardo... Nesse momento Rui saltou, praticamente pulando em seu colo. Ela  despertou dos seus devaneios.


-          Mamãe, o carrinho vermelho ganhou! – Comemorava superexcitado como se não houvesse sido ele mesmo a manipular os brinquedos determinando assim o resultado. Meg  riu, abraçando-o.


-          Viva! O carrinho vermelho ganhou! – Ela exclamou, fazendo eco à alegria do menino. Logo ele se pôs novamente a brincar.


-          Agora vou fazer o trenzinho atravessar a ponte para levar “supimentos” aos soldados. – Ela achou graça com o engano da criança. Rui deveria ter visto aquele tipo de cena em algum filme do qual assimilara o termo “suprimentos” mas erroneamente interpretado devido à  novidade em relação ao seu vocabulário de menino.


-          Suprimentos – Ela corrigiu. Ele fez que não ouviu mas Meg sabia que ele provavelmente iria pronunciar certo agora. Pensou em Leonardo novamente.


              O que sentia por ele era tão positivo... Não como a atração por Gustavo ou Nelsinho, sempre misturadas a um quê de desamparo ou carência, nem como com Humberto, aquela sensação inclusiva de pertença, de fechar-se para o exterior. Com Leonardo havia algo pleno, alegre, algo como a clareza daquela manhã ampla, livre e luminosa, cheia de afeto. Mas ele não havia telefonado e ela não queria sofrer. Resolveu esquecer. De certo modo era fácil não sofrer porque o sentimento era tão suave, manso, acolhedor. Bastava deixar estar. Pensar que afinal havia sido um lindo encontro para lembrar.
                   Deitou-se no sofá, resolvida a recuperar-se de todos os conflitos do dia anterior. Então amanhã retornaria suas ocupações habituais e quem sabe ainda viria a descobrir o verdadeiro amor. À tarde porém dona Ligia chamou-a ao telefone. Meg  pensou tratar-se de Jaqueline, Nelly ou algumas das amigas da revista.


-Alô!


-Meg, tudo bem? É o Leonardo.


            Seu coração bateu com mais força. Adorava ouvir aquela voz. Deviam encontrar-se à noite. Meg esqueceu a restrição da mãe quanto a ficar com Rui e aceitou convite.


 
     2


                   I -


      Foi preciso um  sem número de arranjos para lograr comparecer ao encontro. Meg por fim recorreu à Marlene. Assim agora ela tocava a campainha da amiga de dona Ligia, a qual tanto estimava o seu filho. Celibatária, via no menino uma companhia agradável que a encantava.
          Marlene, um vestido estampado sobre o corpo obeso, sorriu. Seus cabelos pintados com reflexos emoldurando o rosto cheio acentuavam a impressão de afeição e simpatia. As pessoas costumavam se sentir à vontade com ela.

-          Oi Meg. Meu querido, você chegou!

            Ela saudou, abraçando Rui  que se sentia muito satisfeito naquele ambiente repleto de possibilidades atrativas.

-          Oi Marlene  - Meg beijou-a no rosto. - Venho pegar o Rui amanhã pela manhã.

-          Tudo bem, se você quiser venha depois do horário de trabalho.

            Marlene era funcionária pública aposentada. Assim se dispunha a tomar conta de Rui.  Permaneciam em pé no vestíbulo apesar do seu convite à Meg para sentar-se.

-          Certo, venho então depois da revista. – Meg respondeu calculando que assim Rui teria mais tempo para descansar da rotina da escola.

              Estava ansiosa. Queria estar com Leonardo e a aproximação do encontro aumentava, sem que ela se pudesse explicar o motivo, a tensão da expectativa. Caminhou então até a pracinha do bairro. Reparou no vulto proeminente do homem à espera. Os cabelos ligeiramente encaracolados, castanho-claros, brilhavam com um halo de luz formado na posição em que havia se postado sob o jato da lâmpada de mercúrio. Meg aproximou-se e ele a viu. Sorriram e se abraçaram.
             Beijaram-se. Não havia coisa alguma a não ser aquela sensação de completude. Meg soube que todo o tempo estivera sem uma parte de si mesma, que aquilo que nela ansiava, só ansiava pelo ser que era ela mesma e que no entanto sozinha não poderia se dar a si mesma. Havia tanto a descobrir no beijo...
          Não só a delícia e o desejo mas também tudo o que vinha constatando pertencer à natureza do mundo, os contratos provisórios, os deslizamentos da vontade trocando os papéis dos objetos, o uso simples do ser humano como coisa no sistema seco de atribuições confusas conforme interesses os mais espúrios, sórdidos, inapreciáveis... Sentiu a tristeza do fim das coisas anunciado no instante do início como impossibilidade de recomeçar o tempo. Sentiu o seu ser efêmero, toda a sua finitude, os seus limites aflorando  em todos os graus da intensidade do beijo
            Ele  correspondeu com uma força que lhe pareceu eivada de mensagens, fragmentos de sua percepção jogando-se na intenção dela como se narrativas inesgotáveis pudessem emergir de cada pequeno evento em que ele havia possuído a essência.
            Acordaram lentamente do sonho incansável de eras. Estavam sorrindo e caminharam sem cansaço, uma plenitude preenchendo a vida nova.

-          Encontrei um lugar incrível. – Ele contou. – fica na encosta de uma montanha, você vai adorar.

-          Como a gente faz para chegar lá?

            Leonardo aparentemente não possuía automóvel e Meg pensou que não sabia afinal nada sobre ele. Apenas que era quase tão jovem como ela, tendo agora vinte e cinco anos e trabalhando ocasionalmente com o pai, dono de uma distribuidora de bebidas. Aquele pensamento a fez penetrar uma região inusitada, dominada por um vazio aparente. No entanto a voz dele, modulada e graciosa aos seus sentidos, reconstituíram o seu prazer de estar.

-          Não é longe. Vai ser fácil chegar lá pegando o ônibus mas poderíamos ir até a pé se quiséssemos.

            Ele a conduziu de modo que dali a pouco, no interior do veículo eles riam e trocavam idéias sobre coisas variadas, impressões do trabalho, amigos e pessoas próximas. Meg falou do  seu filho.

-          Ele está crescendo tão rápido... É assim, de repente eu o ouço perguntar sobre coisas que me parecem complicadas demais para a idade dele e eu tenho que responder. Parece que aprendo com meu filho, entende?

              Leonardo a observava com seus olhos brilhantes

-          Eu acho lindo isso, você com seu filho, com tanta coragem, você está transmitindo algo que é muito bom para ele, um sentido de força, de amor.

               Ficaram em silêncio. As palavras dele pareciam vir do momento de modo que Leonardo parecia agora meditar nelas com a mesma surpresa que Meg, ambos concentrados, avaliando-as. Depois ele se levantou e saltaram, caminhando abraçados.
               Havia uma espécie de reserva, como um parque ecológico e eles penetraram o espaço mágico da natureza em sua quietude noturna através de uma passagem que Leonardo conhecia. Àquela hora as visitas estavam encerradas mas ali estavam eles desfrutando o elemento real, a atração das estrelas, o jogo da aragem e das folhas livres, oferecendo seu ser à presença nua, uma entrega simples, absoluta, como a existência ou o paraíso original.

-          Eu estou tão feliz por estar aqui com você... – Ele falou, roçando os lábios em sua face, acariciando seus cabelos, do seu modo peculiar tão cheio de ternura que ela se sentiu mais do que apaixonada, novamente comovida. O sentido de completude que permanecia entre eles como um dado palpável de silêncio revestindo todos os gestos e palavras impunha uma inércia incomum como se obrigasse a uma atitude de observação pura, o mundo inteiro passando à visão, as sensações e carícias somando-se como ecos, reverberações de uma realidade até então fechada, desconhecida.

                    Mas Meg transportava toda a intensidade do encontro a um tipo de hiato há muito instalado entre o que ela era e o que tinha de ser para os outros, para as suas circunstâncias desconcertantes, a revista, sua mãe, a casa muito pequena, Rafaela, tanta coisa que ela não era e que a constituía, roubando-a, mascarando a sua verdade... E Leonardo parecia tão ele mesmo, tão íntegro... Não seria impossível que ele compreendesse se ela apenas gritasse “Não!Não...?
                  Se o abraçasse com desmesurada força, se deixasse que as lágrimas rolassem... Mas sabia que nada era assim, que tudo se compartimentava em espaços ínfimos, comprimidos pelo contraste do que nelas era impróprio, impessoal, não permitido. Então lembrou-se.
                   Ele a beijava e ela se deixava estar, a noite livre e soberana dominando na amplidão da abertura, na clareira da floresta à encosta da montanha. Mas lembrava-se agora. Um sentido de urgência a tomou. Ela havia estado com Nelsinho ainda ontem em frente à praia ao entardecer.
                   A floresta repousava na brancura lunar que fazia banhar as coisas em um esplendor majestoso e Meg era algo sobressalente, tropeçando naquilo que viera com ela mas de que só agora se dava conta. Aquilo que se interpunha, exigia uma reparação, uma justificativa. Ou não? A forma da dúvida reinstalando-se dominou seus sentidos e ela procurou uma posição neutra.
                    Leonardo a observou, seus olhos escuros pelo desejo, estreitos, sugerindo um universo possível em que ela poderia se deixar capturar para sempre, o desejo, o amor, impelindo-a. Mas havia tanta certeza no olhar dele, uma clareza interior como uma chama incoercível e ela pensou que a dúvida deveria desfazer-se imediatamente solvendo-se no instante e ele exigia saber.
                     Meg sorriu, como se hesitasse buscando uma inserção no tempo. Leonardo acendeu um cigarro compreendendo  o gesto dela ao modo de uma necessidade de recuperar-se em meio a todo o ardor que a paixão comunicava a seus corpos jovens entregues, lançados na noite livre.

-          Leonardo... – Ela não sabia como, mas era absolutamente imperioso explicar-se. Ele captou algo do seu descompasso e voltou-se cheio de solicitude. Antes que ele pudesse perguntar qualquer coisa ela se antecipou, ébria daquele sentido de revelação, peremptório e abrupto, como se equivalesse a uma posse física, uma fusão ritual com a verdade que a reintegraria espetacularmente purificando-a de Nelsinho, de tudo o que a viera invadir, deslocar ou distorcer e seria então uma fusão completa, improvável de se supor pelo modo comum das coisas mas que seu amor teria tornado real.

-          Leonardo eu quero te contar uma coisa. Eu estive com uma pessoa.

-          Como é que é? – Ele pareceu subitamente incrédulo.

-          Era alguém  em quem estive interessada antes. De repente a gente estava ali, sabe, havia se tornado possível, era algo que eu queria tanto, há tanto tempo...

              Leonardo ouvia, aparentemente impassível. Seu semblante de perfil ostentava uma solene irradiância olhando à frente firme, másculo. Agora ela perdera o ímpeto mas era necessário continuar.

-          Eu não achei legal o que estava rolando. Eu parei o lance. Não vou voltar mais a me encontrar com essa pessoa. Eu...

              Ela ia dizer que o amava. Seria muito cedo? Ou ia apenas afirmar que gostava de estar com ele. E aquilo que ela mais gostava era aquela sensação de pura cumplicidade, como se fosse possível o estar junto fundado sobre uma base livre de descompromisso, sinceridade e afeto, mas ele a interrompeu.

-          Meg ... Que pena. – Após um ligeiro intervalo, continuou. – Meg, até hoje você foi a garota com quem eu me dei melhor em tudo, no papo, no amor... – Ela sentiu o coração se contrair, à expectativa de sua sentença. – Mas tudo bem. Acho que se você teve interesse por outro, e ele correspondeu, vá em frente.

-          Mas... – Ela estava surpresa com a conclusão dele. Queria gritar que não era nada daquilo. Ele prosseguiu, inexorável:

-          Sabe, eu às vezes saía com uma menina. Não tinha muito a ver mas sempre era uma companhia. Eu sei que ela gosta de mim pra valer. Vou ligar pra ela agora. Você tem um cartão telefônico?

                  Meg lentamente emergiu da estupefação, não sem um certo desapontamento: agora ela já não tinha como admirá-lo mais, completamente. Cartão telefônico...!
                 No entanto, respirando fundo, desejaria que as coisas não fossem assim. Queria que ele a aceitasse. Queria restaurar aquilo que haviam tido. Mas ele já se encaminhava, resoluto, à passagem de saída do parque. Ela o acompanhou, silenciosa, após negar possuir um cartão consigo, o que era verdade.


II –


          Meg retornou vagarosamente sentindo outra vez a aragem da noite penetrando pela janela do ônibus semi-vazio. Muita coisa dentro dela urgia por ser reordenado. Uma sabedoria ancestral a envolvia. Estava certa de que precisava da integridade. Nenhum ponto obscuro, nada pendente, igual ao coração firme do sol.
          Não estava sofrendo por Leonardo. Se ele ao menos quisesse saber ela diria que sim, que o amava e que na verdade ele não a compreendera. Mas o amor devia semelhar o  pássaro azul do sonho. Ser livre e belo sendo aquilo que era, este amor, estas peculiaridades, o modo como ele havia querido um cartão, o jeito como ele a deixara ir.
             Exatamente sem mais ou menos era isso que havia, era isso aquele amor.
             Ela respirou aproximando-se mais da janela, projetando,  de um modo que parecia propositadamente casual, o peito à frente da abertura, por um breve instante, esperando sentir o vento limpar seu coração de toda mágoa.
             Deixou-se ficar sem pensamentos, aquietando-se. As estrelas piscavam por vezes em meio a bandos de nuvens, paradoxalmente coloridas no céu escuro da noite, envolvendo-as no seu tropel semicontínuo.
            Instintivamente procurou a face do luar, descobrindo-o oculto. Os postes se alternavam rítmicos como as luzes cruas, salientes, a bordejar a longa estrada. Logo o ônibus enveredou por artérias que a reconduziram às avenidas familiares ainda que um tanto despovoadas àquela hora.
          Lágrimas vieram e se foram. Compreendeu-se. Era uma mulher livre. Seus pensamentos formaram uma mensagem para um alguém que deveria existir, tão livre quanto ela, em algum lugar. Depois voltou àquele silêncio novo que a envolvera.


           O sol clareava o mundo. Ela vinha caminhando com o filho. A manhã, vigorosa, insinuava acender as coisas por dentro, levando-as a engajar-se em algum tipo de marcha imperiosa imbuída pelo sentido de ser inquestionável.
         Era como se a noite anterior pertencesse a um outro plano de existência, algum outro ser que não ela mesma, esta Meg, agora, com Rui sorrindo, caminhando feliz na clareira da manhã. Ao mesmo tempo ela sentia a outra noite como um dado oculto em sua carne, um revestimento de força interior. Ela vivera o seu minuto de eternidade com Leonardo. E ela agora sabia que um homem era apenas um homem. Que ele não se ergueria nunca por sobre os seus próprios pequenos limites. Que ele havia se deixado abranger por tudo aquilo que se havia tornado incontornável. Poderia ele alguma vez vir a se arrepender? Pensar que afinal seu juízo não correspondia à intenção real? Não, sorriu consigo mesma. Não. Era melhor esquecer.

-          Mãe, vamos na praia?

                  Ela olhou o rostinho do filho. Rui sentia-se alegre, adorava a casa de Marlene e a mãe não o levaria à escola hoje novamente. A escola que o cansava, que o aborrecia um pouco. Agora o sol se erguia, trazendo-lhe a felicidade da companhia da mãe, a despreocupação com tudo o que se relacionava à escola. Ele sorria para o mundo, encantando-se com as coisas que via, as pessoas que passavam, vez por outra sorrindo-lhes também pois ele se mostrava, em sua auréola de despreocupação e inocência, uma criança belíssima.

-          Que idéia engraçada, Rui! – Meg comentou. Continuou pensando. Resolvera não mais voltar à revista. Algo nela havia mudado. Cuidar de Rui, era isso o que realmente existia em sua vida. Seria preciso economizar, restringir os gastos. Mas ela o faria. Exigiria mais da mãe. Era a sua decisão. Meg via que este era o caminho certo e isto a fazia sentir tudo ao redor com o coração.

                         Assim a quarta e a quinta-feira daquela semana foram felizes. Meg e Rui foram à praia, compraram livros de pano, viram televisão saboreando sorvetes e simplesmente não pareciam sequer se preocupar com coisa alguma.
                          As meninas do departamento financeiro telefonaram e Meg contou que resolvera cuidar do filho. Curiosamente havia a notícia de que Jaqueline também havia deixado a revista. Meg inquietou-se pela amiga. Que teria acontecido? Teria afinal havido alguma coisa entre ela e Romão? Haveria alguma relação entre o romance deles e a evasão de Jaqueline? Meg ligou para a casa dela mas soube apenas que Jaqueline viajara.         
                            Envolvida na efusão da presença, com Rui, Meg viveu a euforia de se deixar ficar, sem compromissos ou pressões.
                      Contudo, sexta-feira, Humberto apareceu com Yasmine, para a visita quinzenal. Meg não tinha opção a não ser aquiescer e esperar pelo domingo quando ele traria novamente o garoto.



        III –


              Os momentos passavam mas Humberto não chegava com Rui. Meg estava em pânico.
        Só, em casa. A mãe estaria em algum lugar, visitando alguém. O calor penetrava pelos cantos dominando a sensação de incompletude. Meg  já fizera tudo. A casa estava limpa e arrumada, ela já havia tomado banho e penteado os cabelos. Suas mãos tremiam. Olhava repetidamente o relógio. Que aconteceria se apenas se deixasse estar a olhar fixamente os ponteiros? Eles desenhavam uma trajetória ininterrupta, frenética, o ponteiro gigantesco traduzindo um sobressalto a cada ultrapassagem de minuto, o ponteiro menor estranhamente alheio a tudo. Como algo podia ser tão alheio? Como as coisas não se traçavam umas às outras num  contínuo variável de plenitude e resposta? Ao invés o momento se tornara estacionário e suas idéias confusas figuravam sugestões que se entrecortavam, nenhuma querendo ceder, como hipóteses prontas a uma batalha sem fim.
                Procurou se  acalmar com um copo d’água, a qual fez derramar sem querer, aborrecendo-se com isso. Voltou a postar-se no sofá, aguardando. Era apenas um ligeiro atraso. Não haveria nenhum mal. Estava assim nervosa por outro motivo. Não devia deixar misturar as coisas. Uma era o atraso de Humberto em trazer Rui. Outra coisa era a conversa que a mãe havia introduzido e que a fizera tão nervosa. Sim, por isso estava nervosa! Certamente. O atraso teria pouca importância. Eles logo chegariam.
           Os objetos repousaram sobre sua aquiescência assim implementada sobre um solo de quimeras.
           O relógio todo-poderoso. A parede. A redondez sobre a parede. A retidão dos ponteiros dentro do vidro, sobre o círculo branco debruado com as listas convertidas em números pelo sistema circular. O móvel de fórmica azul. O elefante de louça, o terço de madrepérola.
             A mãe iria vender a casa. Com o que pudesse apurar compraria um botequim no  bairro mais pobre da cidade. Havia um quintal atrás do botequim. Todos morariam nos cômodos que seriam construídos no quintal. Mauro se responsabilizaria pelo comércio. O bebê iria nascer nestas condições. O bebê de Mauro e Rafaela.
              As lágrimas novamente. Embaçando a visão do relógio, à espera.
              Ela não suportaria morar com Rafaela depois daquilo que havia se passado no início da semana. O telefone tocando a fez saltar.

-          Alô! – Exclamou, cheia de nervosa expectativa.

-          Meg?

         Reconheceu a voz de Nelly.

-          Nelly?

-          Oi, Meg. Que foi que houve? Você não foi mais à revista.

             Meg se viu em uma torrente de sensações contraditórias. Queria conversar mas estava tão ansiosa...

-          É  que eu resolvi cuidar mais do Rui. – Respondeu.

              A voz de  Nelly sobrepunha-se à espera, à desilusão.

-          Estou nervosa, sabe? É que o Humberto já devia ter trazido o Rui, eles geralmente chegam entre três e quatro e já são seis e meia!

                  Novamente a dualidade. Queria desabafar com a amiga sobre seu problema com a mãe. No entanto alguma coisa naquilo semelhava o impossível. Era tão simples, porém, dizer “minha mãe quer vender a casa para ajudar a minha irmã que eu não suporto porque tem o estranho hábito de me ofender!” Mas lá estava Nelly, na linha, provavelmente em seu quarto, com seu papai-mamãe-na-sala, no domingo. Por que a imagem de Nelly instalada na poltrona perto do armário laqueado de branco com enfeites cor de laranja – o quarto que  Meg e as amigas adoravam visitar – porque aquela imagem era tão incompatível com... – Com o quê? Seus pensamentos se abismavam, cernes de complexidade crescente, infinitesimais. Consigo mesma? Com a mãe? Com o modo de ser de Rafaela? Com o fato de Meg sentir vergonha pela conduta da mãe – nunca levando em consideração a ela apenas, e a Rui, mas sempre e somente Rafaela... Como se Meg fosse o interdito, o acessório, o derivado... Como se...

-          Meg? Alô! – Nelly insistia, ao telefone.

-          Alo, Nelly. – Meg respondeu, sombria.

-          Liga para ele. – Nelly sugeriu parecendo estar repetindo a sugestão.

-          É isso que está me preocupando. Já liguei várias vezes, ninguém responde.

-          Que coisa, Meg! Que será que houve? – Ficaram um minuto em silêncio, perplexas.

-          Nelly, vou ver o que faço. Depois a gente se fala.

-          Espera, vamos ver se a gente se encontra... Segunda-feira. Você tem que resolver a demissão na revista de qualquer modo não é? Vamos combinar na lanchonete da esquina. Que horas?

-          As dez. – Meg respondeu, as lágrimas reassomando.

-          Tudo bem. Beijo! – Nelly não pareceu perceber o seu estado emocional.

-          Um beijo, Nelly.

           Meg pousou o fone no gancho. Com as mãos procurou afugentar as lágrimas. O elefante de louça agigantou-se dominando o seu campo de percepção. A fuga das idéias deixava um espaço de desmesura em que o objeto colorido encaixava-se com estranha relevância. Meg observou os contornos suaves e torneados, o jogo de cores, branco, ocre e dourado, dando-se conta de que o que mais atraía nele não era a sua forma, uma forma banal, bem melhor realizada por uma fotografia ou pela natureza mesma – um elefante real – mas sim o material de que era feito. A louça barata, macia ao olhar, predominantemente branca, agradável ao possível toque, apetecível como um gesto hospitaleiro, doce, afável, singelo e puro...
           A porta se abriu repentinamente. Meg ainda estava perto do móvel azul onde havia pousado o fone. A mãe entrou assustando-a.

-          Oi Meg. – dona Ligia notou o seu ar consternado.

-          Cadê o Rui? – Perguntou, enquanto a filha a observava com expressão preocupada.

-          Não sei! Estou super nervosa. Não chegaram até agora e ninguém atende na casa do Humberto.

            A mãe deteve-se ponderando a informação. Por um instante partilharam a inquietude e Meg sentiu que isso representava algum apoio, de algum modo.

-          Liga para a Yasmine. – A mãe sugeriu.

-          Eu não sei o telefone dela.

-          Acho que ela me deu o número uma vez... – A mãe se pôs em marcha, procurando, no quarto, alguma coisa em uma sacola cheia de papéis.

             Voltou depois com algo escrito em um pedaço de folha que deveria outrora ter pertencido a um bloco de notas. Estendeu-lhe o papel. Meg ligou, lutando contra a ânsia que teimava em apossar-se por mais que tentasse lograr o  autocontrole. Uma voz atendeu, estranhamente defensiva.

-          Alô?!

-          A Yasmine está?

A voz hesitou.

-          Um momento.

-          Alô. – Agora Yasmine falava, de modo apático, homogêneo.

-          Yasmine, sou eu, Meg. Tudo bem? Você sabe do Rui? Até agora o Humberto não chegou...

            O silêncio que se seguiu  era espesso, deslocado, Meg sentindo-se à beira de um precipício perigoso.

-          Meg... Eu tomei um calmante... Eu e o Humberto nos separamos.

-          O quê? Mas como? Você esteve aqui na sexta-feira,  com ele!

            Agora o silêncio se turvou como se a espessura anterior fosse um tipo de nada eterno e sacrossanto ao qual um sopro criativo viera perturbar. A voz meio pastosa se revestiu de um longínquo esgar de impaciência.

-          Eu sei, mas nos separamos. Ele saiu com uma mulher. Ele estava saindo com ela há algum tempo mas só agora eu descobri.

            Meg não sabia o que dizer. No entanto sua urgência prendia-se a Rui. Junto com um certo enternecimento pelo estado emocional obviamente comprometido de Yasmine, a vontade de confortá-la de algum modo, a preocupação com Rui se impunha embaralhando as idéias e produzindo uma ligeira afasia.

-          O meu irmão sabia. Eles estavam juntos em um desses ambientes só para homens. Ela estava lá, era uma das que estavam... Entende?

           Parecia que ela se referia à outra como a uma prostituta. O relato era espantoso, porém. Meg sentiu como se fosse impróprio que Yasmine a escolhesse para aquele tipo de confidência. Mas o fato de meramente desabafar poderia ser benéfico e Meg se pôs à escuta, complacente. Era como se, por um ato de gentileza, se deixasse suportar a carga, adiando assim o que realmente lhe importava.

-          Ele continuou se encontrando com ela. Por fim o meu irmão achou que a coisa estava indo longe demais e me contou...

              Yasmine parou como se nada mais restasse para dizer. Meg compreendeu que ela se fechara, aderindo ao relato do que parecia considerar como seu fracasso, à maneira de um transporte ou via pela qual estava partindo para sempre do convívio com Meg.

-          O Rui está com o Humberto, na casa dos pais dele. – Yasmine revelou, porém, inesperadamente.

-          Com os pais dele? – Meg reverberou, o coração sobressaltando-se quase que insuportavelmente.

-          O Humberto não queria a separação. Mas eu não suporto... Olha Meg, o Humberto resolveu ir morar com os pais lá na cidade deles e levou o Rui. – A voz de Yasmine tornou-se impessoal, uma fria voz maquinada pela transmissão telefônica. Meg sentiu-se obrigada à despedida.

-          Bem Yasmine... – no entanto não se conteve, a revolta abrindo um canal para se expressar.

-          O Humberto é louco! Ele não podia levar o Rui sem falar comigo! –

              Yasmine permaneceu silenciosa. Agora era como se nada mais tivesse que ver com Meg ou Rui e mesmo Humberto. Meg tornou a sentir o imperativo mudo para interromper a conversa.

-          Obrigada pela informação. – Ela falou, impensadamente, logo confrontando-se com as próprias palavras como se fossem de algum modo absurdas.

-          Tchau, Meg. – Yasmine desligou.

               Meg sentiu uma aragem perpassando através das coisas, o cheiro da chuva de verão dominando seus sentidos por um momento muito breve. A noite franqueara sem reservas o coração do ser.
                Deu-se conta de que a mãe a observava. Meg teve a impressão inusitada de que a qualidade inóspita que revestira algo de sua conversa com Yasmine se havia incorporado no semblante da mãe que a olhava agora assim como se ela, Meg, constituísse a natureza do estrangeiro, do que devia ser para sempre o desconhecido e o imparticipado.



IV –


            O trânsito não era o mesmo, Meg percebia enquanto o ônibus avançava não muito lentamente àquele horário, em relação às fastidiosas retenções das seis da manhã, a que estava acostumada. Eram agora dez horas e  tudo parecia mais elástico, sem impedimentos.
            Após saltar do ônibus caminhou naquele trajeto costumeiro que agora não devia mais considerar como seu habitual. Visto assim com um olhar novo tudo lhe pareceu peculiar. O aspecto de ordem, o ar algo circunspecto das fachadas dos prédios transmitiam alguma coisa de fortuito, gratuito, justaposição imprópria de muitos elementos dessemelhantes casualmente amontoados. A cidade  não tinha um plano, na realidade era apenas um tipo de caos. Os interesses iam e vinham sobressaltados pelas intervenções da força. Meg sentia-se só.
           Apressou o passo até a lanchonete. Nelly a recebeu com um  sorriso. Vestia um agasalho branco de tecido flocado, felpudo, sobre a calça jeans escura e compacta modelando o corpo pequeno e esguio. Os cabelos vaporosos sobre os ombros, castanhos e lisos, completavam o aspecto de calorosa intimidade.

-          Meg! – saudou afetuosa.

-          Vamos a um restaurante. – Convidou, inesperadamente antes que ela pudesse responder qualquer coisa.

-          Peguei uma hora de folga para ir ao dentista. A gente conversa depois eu vou ao consultório.

              Caminharam um pouco mais. Meg surpreendeu-se novamente pois esperava que o lugar idealizado por Nelly fosse mais distante, porém logo chegaram. Meg não havia reparado naquele restaurante anteriormente. Estava  pensando em como as cadeiras de madeira recortadas com entalhes em forma de coração mais os arcos criteriosamente desenhados por entre as colunas esparsamente localizadas conferiam uma aparência acolhedora ao estabelecimento, ao mesmo tempo em que se  perguntava como não havia visto o lugar antes.

-          É novo. Começou a funcionar na semana passada. Nós viemos à inauguração, foi tão bacana! – Nelly comentou, como se percebesse o sentido dos pensamentos de Meg que imaginou então por um momento as amigas confraternizando alegremente naquele ambiente tão agradável. Desejou ter estado ali com elas. O motivo pelo qual não o havia feito, Rui, presentificou-se em sua mente de forma pungente, como uma falta desesperada e avassaladora que fez aflorar as lágrimas.

-          Ei, que é isso, menina? – Nelly, muito perspicaz, notou o seu semblante entristecido e a reconfortou, pousando a mão em suas costas, mansamente, enquanto se aproximavam das cadeiras.

                 Logo o garçom lhes trouxe sucos de frutas e porções de batata-frita que Nelly solicitou. Meg comentou sobre o que Humberto havia feito.

-          Agora estou sem saber como reaver o meu filho! – desabafou.

-          E a minha mãe... – Sumariamente relatou sobre a mudança em curso. – Tenho que arranjar um lugar para ficar, entende?  - Ela estava nervosa e Nelly procurou tranqüilizá-la mais uma vez.

-          Meg, eu sei que é fácil falar quando se está de fora mas pense bem... Morando com a sua família você estará mais protegida. Não tem tanta preocupação com as contas. Eu também estou querendo um canto só meu, sabe? Mas é muita responsabilidade. E para que sair da revista? Você sabe que ainda pode voltar, se quiser.

               Meg suspirou. Não quis aprofundar o assunto. Para Nelly era apenas uma questão de “ter um espaço”. Mas para ela era tudo, a idéia de partilhar o cotidiano com Rafaela parecia-lhe insuportável, algo como uma capitulação.

-          E a Jaqueline? – perguntou, procurando levar a conversa a um terreno comum e mais ameno a fim de que aquele momento compartilhado com Nelly, marcando o encerramento de sua participação na rotina da revista, resultasse em algo que fosse bom para lembrar.

-          Menina, nem te conto! –  o semblante de Nelly se iluminou e ela continuou, com vivacidade.

-          A Jaqueline saiu com o Romão!

-          Mesmo? – Meg agora se inseria na ambiência que havia constituído o seu modo de ser por aqueles meses de trabalho na revista, incorporando a atitude íntima do seu papel naquele mundo.

              A curiosidade mesclada a uma superficialidade frívola mas cúmplice, cheia de confiança no futuro, estendendo a atenção como um gesto protetor, a base inconsciente de um estar entre, subalterno e necessário, todo aquele conjunto de atitudes e esperas que Meg conhecia mesclado aos prédios austeros ou modernos com linhas arrojadas, as roupas arrumadas, esportivas, o perfume suave das manhãs morosas no trânsito apertado dos ônibus cheios, tudo estava ali em seu lançar-se através do relato de Nelly.

-          A mulher dele esteve na revista, desconfiou de algum modo, sei lá. A Jaqueline se escondeu no banheiro para não dar de cara com ela visitando as seções uma por uma com o Romão, o Gustavo e o próprio Jairo!

-          O quê!? – Meg acompanhava, participando das cenas como se as estivesse presenciando devido à extrema familiaridade daquele mundo. Jairo era nada menos que o chefe do departamento financeiro e assim aquilo que Nelly contava deveria ter representado um acontecimento e tanto.

-          Então logo depois o Romão largou a revista. A mulher dele esteve lá na terça. Quinta ninguém sabia onde ele estava. Como também ninguém mais soube da Jaqueline...

-          Fugiram juntos! – Meg deduziu superexcitada.

-          Só pode. – ficaram se entreolhando algo atônitas.

-          Pelo que eu soube eles estavam mesmo apaixonados... – Nelly comentou.

          Meg se pôs a beber o suco de manga servido em copos altos, com gelo. Ainda  pensava em Jaqueline. O impacto da atitude dela a atingiu de repente e Meg se deixou ficar, perplexa. Contemplou o ambiente, suspirando, tentando recuperar o controle. Levantou-se para ir ao toilette e ao regressar viu  uma espécie de mural, com cartazes colados perto do balcão. Como que por um acaso momentoso reparou em um quadrado branco anunciando vagas  a um preço que lhe era acessível.
         Sentiu que aquela era a reposta e, de modo algo ansioso e precipitado, pôs-se a procurar na bolsa uma caneta para anotar o endereço. Após inteirar-se da sua intenção Nelly aproximou-se como que para inspecionar o ato em curso.

-          Ah, não, Meg! Esse negócio é tipo cortiço, não vai nessa não!

          Meg conhecia a rua ali perto praticamente no centro da cidade mas oculta por trás dos prédios comerciais. Sabia do que se tratava mas sentia-se como alguém sem opções.

-          Sabe do Rick? – Nelly perguntou com expressão distante como se o ato de anotar aquele endereço a que se entregava Meg naquele instante representasse uma súbita barreira interpondo-se entre elas.

          Meg compreendia aquilo como um movimento de afastar-se. O tempo estava chegando, cada uma iria para o seu lado, talvez nunca mais se encontrassem.

-          Vocês voltaram?  - ela perguntou notando sem surpresa a própria voz esmaecendo, o interesse, o antigo e conhecido eufórico interesse, perdendo o sentido, impessoalizando-se como um gesto vago apenas esboçado.

-          Rick ficou noivo da Soraya! – Nelly pronunciou as palavras deixando ressoar uma nota jovem, competente e zombeteira, cheia de uma ternura consciente do fim.

             Caminharam um pouco mais e despediram-se com um beijo no rosto. Meg se deixou levar pelo impulso e se pôs no encalço do endereço que havia anotado como se fosse um náufrago descobrindo um suporte de salvação.


 
V –

         A favela escondida atrás de uma curva da rodovia principal. O ar  parado, morno, aderindo às sombras compósitas dos semblantes encimando corpos encostados aos muros e às paredes dos casebres.
         Meg caminhava, duas da tarde, o sol febril, sua procura crescendo no vazio dos pensamentos desencontrados. Já estivera ali mais cedo, logo depois de despedir-se de Nelly à porta do restaurante. Mas a senhoria não estava e ela perambulou pelas ruas do Centro, olhando as lojas, a profusão das cores e formas de vida, tudo misturando-se nos balcões dos vendeiros, os pregões alardeando preços, a existência oferecendo-se à intenção do acaso.
         Comeu um sanduíche, bebeu refrigerante, entrou na biblioteca pública fingindo folhear livros aproveitando os assentos e o ar refrigerado. Agora voltava a ver se Célia não estaria já a postos. Parecia muito vivida e ao mesmo tempo conservava um jeito jovem  nas sobrancelhas finas. A pelo muito morena, sobrepunha um rosto comum, os cabelos negros curtos quase encaracolados por sobre  olhos pequenos, atentos, vivos e penetrantes como os olhos de uma raposa. Sentando-se no sofá de uma sala surpreendentemente ampla, estendeu as mãos e Meg assentou-se também.
        O pedaço de papel no restaurante pareceu-lhe a solução abençoada e agora, encarando a mulher frente a frente sentia-se como se todo o seu proceder não passasse de uma temeridade. Seu lugar devia ser junto à sua família, assim sempre havia sido, que loucura era aquela então? Contudo os modos de Célia acendendo um cigarro e fazendo perguntas perfunctórias com voz amena, a sala fresca, fiapos de vida que se poderiam conjugar à sua solidão, pontos de fuga que a poderiam conduzir para fora do inferno, algo no colorido da tarde, não sabia o que mas parecia-lhe promissor. E ela se deixava responder, jogando o jogo, fingindo ser natural.

-          Sim... Morava com a minha mãe...Resolvi mudar porque... – De repente começou a chorar. Não conseguia se conter. Estava indo tudo tão bem... Pensar que estava logrando o seu papel na pantomina  mas que as lágrimas incontroláveis se haviam interposto redobravam a compaixão que sentia por si mesma e isto arrastava novas lágrimas, somando-se à estranheza de estar-simplesmente-ali.

          A mulher estendeu-lhe um copo com água, falando com amabilidade e segurança, alguém habituado a este tipo de cena.

-          Calma, tudo bem, não se preocupe, fique à vontade, não tem problema, eu entendo.

    Meg sorveu a água, buscando  refúgio no frescor.

-          É o meu filho. O pai o levou, sem minha permissão. – procurou limpar as lágrimas. Célia ofereceu uma caixa de lenços de papel, o que a enterneceu.

-          Minha mãe vai se mudar. Eu... – respirou fundo, tentando reaver o equilíbrio.

-          Eu tenho um quarto vago. São duzentos reais por mês. Você pode lavar a roupa e usar a cozinha conforme horários combinados. As taxas estão incluídas. – Célia falava de um modo insinuante, informal, parecendo no entanto estar repetindo uma mensagem longamente  lembrada. 

                   Meg assentiu, controlando-se, sentindo-se algo revigorada pelo jeito manso de Célia que a conduziu até o pátio com uma abertura para o céu, onde uma fileira de aposentos compactos se erguia quietamente sob o sol faiscante da tarde que principiava a tornar-se ventosa.
                   Célia estendeu-lhe uma chave. Meg se comprometeu a acertar a mensalidade ainda naquele dia. Assim entrou no quarto pensando apenas que teria que voltar ao centro, recorrer à conta bancária e às suas economias, depois conversar com a mãe.
                  O quarto a acolheu com um frescor acentuado, algo frio e incisivo que a fez olhar em volta examinando o ambiente. Não queria se deixar levar pela insensatez. Olhou o armário pequeno e escuro, a cama com seu lençol ralo, a padronagem esmaecida pelo uso, um cheiro de pinho recentemente espalhado no ar.
            Que viera fazer ali? Não seria ela mesma que estivera a procurar-se, e agora distanciava-se assim, tanto mais... Como retornar, porém? Sua mãe venderia a casa, ela não sabia de Rui. Restava agüentar-se até receber seu quinhão naquela partilha odiosa. Restava abandonar tudo e recomeçar.
             Não devia voltar à revista apesar da sugestão de Nelly. Como chegaria, vindo de onde se encontrava agora? Provavelmente as amigas não entenderiam, não quereriam a sua companhia sabendo que ela morava num lugar como aquele. Ela porém jamais iria ficar com Rafaela no bairro distante. Mas não era só isso. Ela havia se transformado.
                    Descobrir que Rafaela era filha de um homem a quem a mãe havia amado tornava plausível muito do que antes parecia incompreensível. Mas ao mesmo tempo mudava a realidade, o modo como via as coisas. E ter Humberto agido daquele modo, tão traiçoeiro, tão sem aviso...
              Sentada na cama do quarto frio constatava que simplesmente mesmo que o quisesse com todas as suas forças não conseguiria voltar à revista. Não era mais o mesmo ser.
              A novidade da idéia era atordoante mas seus gestos a completavam maquinalmente enquanto ela mesma se observava decidir e agir.
              Não se deu ao trabalho de abrir a janela. Ficaria para depois estabelecer laços de intimidade com o lugar. Havia o  que fazer e ela encaminhou-se resoluta à cidade. Nuvens começavam a se formar ao redor do sol e ela sentiu cansaço e sede. Comprou mais um refrigerante e esperou horas na fila do banco. Suas economias chegariam apenas para manter-se por algumas semanas, descontando o aluguel do quarto. Assim ela pensou em conversar agora com a mãe  para ajustar as contas.
               Sabia que já havia um comprador para a casinha, as negociações caminhando com rapidez como era o jeito de dona Ligia. Meg queria o seu montante. Depois arranjaria um emprego. E Rui... O que deveria fazer quanto ao seu filho?
                 Arrumou o dinheiro que o caixa lhe estendeu, na bolsa, e caminhou a esmo pela rua. As calçadas cheias de gente apressada indo e vindo a consolavam levando-a a um meio transe na observação do movimento aleatório de cores e formas perpassando sem cessar. Respirou fundo sentindo as gotas de chuva fina precipitando-se sobre tudo e todos na errância dos passos soltos, andar por andar, misturando-se ao caos íntimo das multidões humanas.
                Para que ter pressa? Por que precisaria de um objetivo naquela tarde, naquela chuva? Desistiu de procurar por dona Ligia. Caminhou até se sentir entorpecida, os cabelos inteiramente molhados, a roupa pesando na retenção das gotas gélidas. Era bom. Tudo era bom. Vagava sem identidade, desoprimida. Estava. Entre. Entre os seres, como se fosse também um ser.
                  Aos poucos um plano foi se formando em sua mente. Claro, ela devia procurar pelo filho, na casa dos avós. Ela iria até a cidadezinha deles. Exigiria que o restituíssem. Possuía o amparo da lei, a decisão do juiz.  Ela o faria valer. Voltou à pensão.

-          Nossa você está encharcada! – Célia comentou ao vê-la. Para alcançar o quarto no quintal era preciso utilizar o caminho da sala e Meg reparou em alguém mais sentado no sofá, um homem de meia idade, robusto, pequena estatura, moreno, cabelos grisalhos e encaracolados, curtos. Possuía um olhar atencioso e benévolo. Levantou, estendendo as mãos.

-          Você deve ser a Meg... – Cumprimentou.

-          Este é o Joaquim Dantas, nosso companheiro –   falou Célia, à guisa de apresentação. – Ele mora no quarto vizinho ao seu.

         Meg retribuiu a saudação sentindo as mãos do homem nas suas como um contato ameno. Joaquim exibia maneiras corretas parecendo uma pessoa de bons sentimentos. Meg simpatizou com ele.

-          Muito prazer – sorriu – Eu preciso me trocar. Peguei uma chuva! – falou enquanto estendia à Célia a soma correspondente ao valor do aluguel. Eles anuíram e ela prosseguiu molhando-se ainda mais um pouco no pátio até alcançar o seu quarto, no final de uma fila de mais quatro aposentos fronteiriços a uma outra. Cinco pequeninos abrigos em ambos os lados formando uma colméia de dez lugares.

                  Só havia um banheiro de uso comum a todos os inquilinos, um aposento minúsculo em um canto do pátio. Meg não havia trazido roupas de casa mas havia comprado algumas blusas e uns shorts baratos, mais peças íntimas, pensando em pegar suas coisas no dia seguinte quando então conversaria com a mãe. Ficaria ela preocupara?
                Fechou a porta do banheiro e tomou um banho, a água não tão quente quanto gostaria, rajadas de vento penetrando por entre folhas de zinco que recobriam o telhado. Enrolou a toalha que havia encontrado no quarto em seus cabelos. Respingos de chuva tocaram em sua face. Adentrou o quarto e deitou-se. Lembrou que devia comer. Não sentia fome. Mas estava praticamente na hora do jantar e ela se sentia tão cansada que não poderia fazer mais do que usar os biscoitos comprados na cidade que restavam em sua bolsa mais a água mineral que havia lembrado de trazer.
                Lágrimas misturavam-se ao gosto da massa de chocolate. Seu corpo estava pesado, o frio interpunha-se entre ela mesma e a vontade de fazer qualquer coisa. Havia um cobertor insuficiente para suas necessidades e ela se enrodilhou sentindo a cabeça latejar.
              A noite arrastou-se na vigília entrecortada por períodos de sonolência dolorida, o frio onipresente, a febre subindo. Pela manhã pensou em gritar por socorro. A febre agora era muito alta e ela adormeceu.
         Acordou com o barulho imperioso dos golpes na porta, chamando, chamando... Meg lutou para sair do torpor, a custo logrando levantar-se. Célia a encarou com expressão assustada.

-          Mas o que é que houve com você? – havia outras pessoas mas Meg ignorou-as e se deitou exausta pela febre. Sentiu que Célia encostava as mãos em sua testa.

-          Está com muita febre! Você precisa de um médico. – Meg abriu os olhos. Não sabia como poderia se levantar novamente.

          Célia tinha um amigo que dirigia uma Kombi velha, no bar da esquina, fazendo fretes para sobreviver. Meg sentiu que ombros fortes a erguiam e acordou no hospital.


VI –   

               “Não quero a rosa que me dás: eu quero a rosa que tu és”.

                       Meg sorriu ao ver o Joaquim Dantas entrando no quarto. A bandeja pequena que trazia nas mãos a fez, porém, franzir o rosto numa expressão defensiva. Há uma semana ele vinha pontualmente pela manhã aplicar-lhe a injeção, sempre com alguma frase espirituosa, procurando talvez melhorar o ânimo enquanto ela se punha de bruços esperando a dolorosa aplicação.
                   Ela ponderou-lhe as palavras:

-          Bonita frase.

-          É um poema. – Ele sorriu.

              Meg tornou a pensar  que era que aquilo poderia envolver. No início estava tão fraca, tomada pela febre, que sua dúvida era algo como uma vibração pairando em torno, sem forma, apenas a sensação. Gradualmente o mundo retornava aos seus sentidos e ela formulou então o pensamento com clareza. E se ele a estivesse tentando seduzir?
            Quem era aquele homem que entrava em seu quarto e a via voltar-se de bruços, expondo-se? Por que o médico tinha que ter receitado a injeção “naquela” região? Mas Joaquim Dantas era tão simpático... Parecia tão correto...
           Ao completarem-se as duas semanas de tratamento as injeções findaram e Meg sentia-se bem. Ainda havia aquela impressão de alheamento causada pela fraqueza, mas andava pelos arredores, alimentava-se regularmente, conversava com as pessoas.
            Sua mãe havia efetivado a venda da casa e estava morando com Rafaela. Mauro trabalhava no botequim garantindo o sustento da família no bairro pobre, afastado, que Meg detestava. Célia havia notificado a dona Ligia conforme a sua solicitação de que ela estava morando na pensão do centro. A mãe viera visitá-la e acertaram as contas enquanto ela ainda estava febril, dona Ligia depositando o valor que lhe cabia no banco. Depois a mãe envolveu-se no turbilhão da mudança que agora se havia completado.       
                  Agora Meg esperava recuperar-se, receber a alta do médico e encontrar um emprego. Alugaria uma casa, resolveria tudo em relação a Rui... Mas estava, nesse ínterim em que se recuperava da pneumonia, descobrindo um mundo até aí desconhecido
                    Célia era uma mulher enérgica e vigorosa mas curiosamente branda de maneiras, agradável ao trato. Seus olhos vigilantes de raposa absorviam os detalhes da pensão, não deixando escapar nada. Chamava os inquilinos de companheiros, acordava antes dos outros, recebia as duas meninas que arrumavam os cômodos, zanzando por ali o dia inteiro, atarefadas.Eram pequenas do bairro favelado que se situava por trás das imponentes construções do centro financeiro da cidade.
            Os ônibus, trafegando nas artérias mais importantes do lugar, não deixavam supor a realidade daqueles casebres que se estendiam como uma tapeçaria estranha, oculta pelos edifícios altos, as superfícies espelhadas das janelas quadriculando os reflexos do sol.
              Célia havia curtido seus anos de presidiária por conta de um delito que afirmava jamais ter cometido. Estava trabalhando  na casa de uma mulher rica e idosa. Os filhos, crescidos, moravam em apartamentos independentes e costumavam visitá-la. Um deles reparou nela e logo começou a freqüentar seu quarto. Depois, por conta do vício nas corridas de cavalos roubou dinheiro da mãe, que o acusou. Os outros três, para evitar um  problema na família,  o inocentaram acusando Celia. O dinheiro foi encontrado no quarto pequeno, abafado, que ela ocupava na casa enorme.

-          Não sou nenhuma santa mas também não sou otária. Claro que se eu puder arrumo o meu mas não ia dar tanta bobeira! Se eu tivesse mesmo afanado aquela grana nunca iriam  achar a bufunfa logo ali no quarto! – Defendeu-se, no tribunal.

           Assim seus dois anos de cadeia serviram para que se tornasse respeitada nos círculos de marginalidade que interligavam todos os bairros povoados por casinhas tímidas, janelas que nada ocultavam ou deixavam ver, portas  por vezes sempre abertas, crianças descalças com sorrisos de anjo, uma doçura antiga envolvendo a atmosfera triste, esquecida, à margem do tempo.
           Ainda presa Célia integrou um programa de artesanato solidário, revelando algum talento, ganhando dinheiro que só poderia usar quando saísse. Por meio de um advogado bondoso que auxiliava no que podia as detentas, usou o dinheiro numa poupança fixa e miraculosamente foi sorteada. Quando livre o prêmio serviu para comprar a pensãozinha que era agora o seu ganha-pão. Célia considerava-se, e era considerada pelos outros, afortunada. Era uma senhoria simpática, calorosa.
          Mas por trás do seu olhar de raposa pressentia-se que estava a par de todos os lances, por dentro dos boatos e das falcatruas, defendendo-se a si e aos outros, facilitando as transações em andamento e assim por diante sem se deixar comprometer especificamente com coisa alguma. Um entreposto no trânsito das armações mais variadas, uma estação firme em meio a margens revoltas, uma ponte sobre águas nem sempre tão tranqüilas.
           O bairro exsudava casinhas nas ruelas miniaturizadas pela necessidade. Fios emaranhados se interpunham nos postes toscos, postos de vendas de bebida ostentavam por vezes mesas e cadeiras que tomavam o espaço de modo a ser dificilmente imaginável que algum automóvel pudesse transitar por ali e no entanto de vez em quando caminhões de gás atravancavam a rua, as mulheres juntando as moedas, os afortunados ostentando seus botijões.
           Um e outro transeunte, agasalhado com uma desgastada malha de tom sóbrio, verde, cinza, creme, preto, perambulavam. Ao notar alguém caminhando com um pouco mais de impetuosidade alimentada, se achegavam:

-          Aí, mano, tem um cigarro?

            Era aquilo o tempo todo, filar cigarros até que topavam com um meio de defender algum e a sorte se presentava na forma do macarrão com ensopado, feijão com arroz, o prato feito do milagre que sempre vinha entre os espaços mais ou menos longos de perambulagem.
             Os meios eram variados. Relógios de pulso, que se conseguia postando-se na ponte de acesso ao mercado lá mais para o norte e surpreendendo os gabolas que os ostentavam feito iscas ingênuas, eram vendidos ou trocados por outras coisas até renderem uma moedas. O jogo,  totó, bilhar, carteado, imperava.
             A ronda, por exemplo: apostava-se no naipe da carta combinada que viria, por exemplo, o ás. No começo o otário ganhava para depois perceber que a banca sempre sabia um pouco mais sobre os azos do acaso. “Uma coincidência, a sorte da vez...” Mas quem estava por dentro nem ria, só olhava... qualquer banca sabia era de cor o verso de suas próprias cartas, marcando-as com talco sobre riscas imperceptíveis aos otários, com todo tipo de micropercepção possibilitada pela argúcia da necessidade. Mais afastado, lá para o miolo da favela, era o terreno perigoso das contravenções pesadas.
             Alguns eram honestos, faziam fretes, eram flanelinhas, seguranças, mulheres havia, faxineiras, diaristas, poucas prostitutas pois havia nessa época um bairro só para elas, algumas lésbicas, algumas ninfomaníacas, algumas moças esperando casar, algumas já casadas esperando o marido voltar dos canteiros de obras. Os peões voltavam pela noitinha com suas marmitas, o quadrângulo prateado que a mulher limpinha, cheirando a sabonete-xampoo barato-desodorante, preencheria na madrugada seguinte com feijão, arroz e omelete. Uma ou duas vezes por mês, perto do pagamento, um bifezinho, sempre que possível uma alfacezinha, uma rodela de tomate... E os  meninos recebiam o pai em frente à televisão, elite do bairro, a família unida...
             Na pensão de Célia estavam agora ocupados sete quartos. Havia o Joaquim Dantas, vendedor ambulante de bijuterias compradas em lojas com “preços especiais para revenda”. A Mara, moça robusta, sustentada por um nordestino rico que a mantinha por sexo de vez em quando mas mais por pena já que ela viera do interior, era feia apesar de nova, complexada, tímida, não conseguia arranjar emprego. Uma moça esbelta, bonita, ninfomaníaca, que trabalhava como faxineira-diarista em casas de família, a Gloria. Uma senhora bastante velha,  magra, calada, dona Juliane, com fama de louca, que vendia as remessas de suspiros que cozinhava duas vezes por semana embalando-os em plásticos que lacrava com um grampeador austero, grande, pesado, de um metal frio e impositivo. E um curioso grupo de hippies que ocupava dois quartos contíguos, formado por três rapazes e quatro moças que ninguém sabia ao certo o que faziam para sobreviver.
       O mais misterioso era uma moça deste grupo, o cabelo muito fino, castanho claro, longo, a expressão de uma inocência pungente, que Meg, nas andanças exploratórias pelo lugar, recuperando ainda de sua doença, costumava vez por outra encontrar, sentada num canto escondido do pátio, chorando.


VII –

           Meg procurou aproximar-se. Sentou-se. O dia estava muito calmo e suave. Uma quarta-feira, logo depois do almoço comprado no bar da esquina. Célia fazia sua contabilidade na mesa da sala. As duas meninas descansavam do almoço para daí a pouco lançarem-se à coleta de roupas para lavar pelas quais eram pagas pelos inquilinos que assim o preferiam ou podiam. Mara ouvia rádio, música popular, bem baixinho. Os outros estavam trabalhando. Quartos não ocupados ostentavam  portas abertas.

-          Posso me sentar com você?

         A moça encarou Meg. Não havia quem se acercasse, normalmente. Os hippies eram vistos como espécie incompreensível. Mas os deixavam em paz a gente simples ou vivida demais para se deter em considerações de princípio, acostumados como estavam a outras loucuras.
         Ela não sabia bem como responder, tão entregue às lágrimas. Havia chorado tanto e tão sistematicamente que parecia-lhe tudo então um mundo todo-aquoso à parte. Meg surgia como um dado novo, não previsto ou suspeitado na materialidade oblíqua do véu líquido. Encolheu os ombros. O pátio não era propriedade sua, afinal.
        Meg deixou-se ficar com a moça, esperando que ela dissesse alguma coisa. As lágrimas semelhavam uma catarse que redimiria a ambas. No entanto a sua presença interferiu de algum modo no processo e a moça parou de chorar, estando agora unicamente e observá-la.

-          Como é o seu nome? – Meg perguntou desistindo de esperar a iniciativa dela.

-          Patrícia – dizer seu nome era como aquiescer. Sentiu docemente o mundo lavado, a tarde de sol.

-          Meu nome é Meg. – ficaram em silêncio.

-          Você estava doente, não é? – Patrícia perguntou.

-          Estou melhorando. O pai do meu filho o levou para outra cidade, não sei o que fazer para recuperá-lo. A minha mãe, com quem eu morava, se mudou para longe e agora eu nem sei onde poderíamos morar... – Meg falava com naturalidade. Aquele pequeno discurso ela já o repetira tantas vezes...

-          Eu ouvi dizer. – Patrícia revelou. Meg assentiu sem surpresa, pensando em Rui. Então pareceu retornar sua atenção ao presente.

-          E você? Por que estava chorando?

              Patrícia pareceu hesitar. Como os outros não costumavam se aproximar nem havia sido considerada a questão de se poderia ou não comentar com mais alguém sobre os assuntos da comunidade – o termo que costumavam usar  para designar-se como grupo. Mas as coisas eram também tão complicadas... Sua percepção encontrou casualmente fragmentos de nuvens brancas deslizando pelo azul do céu.

-          Você não entenderia. – falou  afinal como se respondesse mais às suas próprias dúvidas.

-          Por que? – Meg retrucou. Até então nunca havia sido o caso de cogitar em alguma situação humana que não fosse por si mesma compreensível uma vez relatada.

            Patrícia encarou-a com expressão pensativa.

-          Por que... Porque você não entenderia o motivo pelo qual eu choro. - Ela  repetia as palavras como se por este meio pudesse equacionar os termos do seu problema e encontrar um resultado ele mesmo passível de ser convertido em palavras.

-          É por causa do Platão. – Sua voz possuía uma qualidade flexível, lembrava o arrastar da seda, lycra, ou nada disso mas uma superfície altamente elástica, catalizadores, curvas, junções.

-          Você está apaixonada por ele? – Meg perguntou, ingenuamente, ante o tom ligeiramente provocador de Patrícia. Ela abanou a cabeça, como que impaciente.

-          Platão foi um homem que viveu há dois mil e quinhentos anos!

         Meg se deixou quieta, observando a jovem que por sua vez a encarava firmemente. Percebeu que as lágrimas voltavam a inundar a face que se oferecia assim na pretensão de uma dureza que na verdade ela não possuía. Patrícia parecia uma criança lutando com o fluxo aquoso de sua mágoa. Sua voz soou afinal, irritada, desbafando.

-          Eu amo o Paco, quero ser só dele, entende? E quero que ele seja só meu. Mas ele diz que todos temos que agir conforme Platão ensinou, por que Platão foi o mestre incógnito de Jesus assim como revelou Nietzsche.

             Meg não estava realmente entendendo nada.

-          Quem é Paco? – Perguntou após reunir as informações e isolar o dado importante de que ela amava alguém.

-          É um dos rapazes que moram com você?

-          É.

-          E o que o Platão tem a ver com isso?

-          O  Platão disse que o certo é que os homens possuam tudo em comum, inclusive as mulheres...

           Meg não compreendeu de imediato.

-          Como assim? – Mas logo a frase fez sentido em sua mente e ela arregalou os olhos, encarando a outra, muito surpresa...

-          Quer dizer que vocês todos...

-          Também não é assim como você está pensando. Somos responsabilidade deles, todas nós igualmente, mas ficar mesmo fica só quem quer, quando quer.

           Patrícia então se fez mais explícita. As moças do grupo eram “esposas” dos rapazes. Não havia propriedade privada e eles se consideravam o núcleo de uma nova consciência que seria a da humanidade por vir.

-          Mas eu queria morar com o Paco, só eu ele, termos nós os nossos filhos, não tudo assim, de todo mundo...

          Meg tenteou entender porque Patrícia continuava com eles, já que não era o que desejava. Ela simplesmente faria qualquer coisa para ficar com Paco, mesmo naquelas condições.  No entanto, sofria imensamente. Procurava por todos os meios convencê-lo a mudar, mas Paco permanecia irredutível: todas ou nenhuma e mais Wagner e Soren, os outros rapazes do grupo. Contudo ninguém forçava a utilização de seus “direitos” em relação a Patrícia pois sabiam que ela não os desejava. Ainda assim Paco não dispensava Leda, Raquel e Nelida, as moças que completavam o grupo, resolvido a manter as regras da comunidade “República do Alvorecer”.

-          Mas não chore, Patrícia. – Meg, na verdade não sabia o que fazer. Patrícia chorava ao seu lado e as coisas que dizia começavam a fazer efeito pelo seu inusitado, Meg vendo-se falar por falar, sem ponderar o sentido.

-          É assim mesmo, quer dizer, tudo bem, não chore, vai dar tudo certo...

            Depois aquilo não lhe saía da cabeça. À noite procurou pelo Joaquim Dantas.

-          Você sabe quem é Platão?

             Eles estavam no quarto de Meg, era relativamente comum o amigo vir dar uma palavrinha com ela à noite quando voltava do serviço. `A indagação ele esboçou um sorriso e seu rosto adotou uma expressão sonhadora.

-          Platão... Ah! A Grécia...! Era um lugar em que alguém como eu poderia ser feliz...

             Meg esperou. Que quereria ele expressar assim? Algo em Joaquim Dantas despertava sua curiosidade, havia alguma coisa nele que ela não compreendia.
              Na semana anterior, quando ele aplicava-lhe as injeções, perguntava-se o que podia resultar expor-se assim, cotidianamente a um homem. Mas a expressão dele continha um traço positivamente irônico, quase zombeteiro em todas aquelas ocasiões. Agora falava como se houvesse  qualquer coisa que o diferenciasse dos outros, algo a ver com a Grécia... Onde era mesmo a Grécia? 2500 anos! Meg não estava entendendo e se conscientizava disso enquanto Joaquim Dantas suspirava com expressão distante.

-          É alguma religião? – Balbuciou.

-          O quê? – Joaquim Dantas pareceu estar voltando à realidade.

-          O Platão é uma religião que prega que os homens devem possuir todas as mulheres? Uma religião grega?

O Dantas fez um silêncio consternado e de repente começou a rir.

-          Mas quanta bobagem! Quem foi que falou uma coisa dessas?

           Meg apenas olhou para ele, muda. Estava totalmente confusa.

-          Platão é o nome de um filósofo.

-          Filósofo?

-          Isso. Filósofos não “pregam” como líderes religiosos, eles apenas propõem teorias que fundamentam através de argumentos.

-          Teorias...

-          Teorias, modos de compreender as principais questões da existência, sobre o ser, o sentido, a verdade...

-          Mas ele não falou nada sobre os homens e as mulheres?

-          Até que sim, na República, mas dificilmente seria isso um aspecto realmente importante em termos teóricos. Ninguém julgaria a doutrina platônica com base neste detalhe. Ele é um pensador importantíssimo, a obra de Platão está na base de todo o pensamento ocidental!

             Observando Meg, Joaquim Dantas julgou ser oportuno esclarecer:

-          República é um dos livros de Platão. – Ficaram silenciosos por um instante.

-          Por que você me pergunta isso?

           Meg  pensou que talvez não fosse correto falar sobre a intimidade de Patrícia e do grupo, ainda que ela não houvesse feito alguma restrição a respeito. Suspirou. Tudo era mesmo complicado, as informações pareciam truncadas. Afinal Platão propunha ou não uma espécie de poligania generalizada? Parecia que o Dantas havia ratificado aquilo mas então porque ele se fazia tão veemente em afirmar que não se devia levar tal coisa em conta, que eram outros os motivos que determinavam a importância de Platão. Platão... Que nome engraçado! Meg nunca havia ouvido falar nele antes, ela que nem havia ainda concluído o segundo grau. Percebeu no entanto que agora o Joaquim Dantas parecia meditativo, seu rosto um tanto curvado sob o peso das costas à luz crua da lâmpada do quarto pendendo do teto, solitário.

-          Como era a Grécia? – Meg insinuou a pergunta de modo suave. O rosto dele se iluminou mansamente como se pudesse recordar.

-          Era e é um lugar lindo. O mais belo do mundo inteiro.

-          É só por isso que você disse que poderia ser feliz lá? Você não é feliz aqui?

           Ele recebeu o interesse dela como um misto de calor e ingenuidade. Contudo havia uma nota de firmeza na intenção da amiga.

-          Não, não é só por isso. É porque lá não existia o preconceito, na época do Platão as pessoas poderiam viver conforme a sua natureza.... – Meg descobriu então que Joaquim Dantas era homossexual. Assim ela afinal compreendeu porque ele exibia uma expressão tão irônica diante do seu embaraço à época do tratamento.

            Ele esperou um pouco, observando-a. Sua revelação envolvia um julgamento sobre a índole de Meg mas havia sempre um risco, ainda que mínimo, de rejeição. Contudo ela se enterneceu como se penetrasse as dificuldades que o preconceito representavam para ele. A amizade deles cresceu então e Meg se sentia reconfortada na companhia do Dantas.
            Logo estava curada e o cotidiano mudou.



VIII –

           Aquelas semanas de tratamento haviam sido de andanças tímidas pelo pátio, o ritual de buscar o prato feito no bar da esquina, as horas monótonas lendo jornais e revistas no quarto. Havia as conversas com o Dantas, à noite quando ele costumava ficar por uma meia hora contando sobre os eventos do dia, ou com Célia ou com algum dos inquilinos. Certa vez patrícia lhe dissera:

-          Eu conversei como Paco sobre você.

-          É mesmo?

-          Ele falou que você tem alma de ouro como nós mas que é muito ligada à materialidade. Você ama o mundo, para você a forma é apenas um pretexto da matéria. Isto não permitirá que você se solte. Ele falou para eu te ensinar a olhar para o sol. Assim ao menos você terá força para fazer aquilo a que se propõe ainda que não possa pertencer ao nosso grupo.

          Meg riu. Mas que idéia, ela pertencer àquele grupo! Então uma tarde em que perambulava pelo pátio a ver se encontrava Patrícia encontrou o próprio Paco no canto em que ela costumava sentar.

-          Oi. – Ele saudou como se estivesse à sua espera.

-          Oi. – Meg respondeu, curiosa. Ao mesmo tempo um ímpeto a alcançou. A transição passou despercebida mas o fato  é que subitamente uma energia nova a fazia sentir jovem, vibrante, forte, audaz.

-          Você tem feito bem à Patrícia. – Ele declarou com voz educada, simpático.

-          Como assim? – Meg indagou.

-          Ela está refletindo mais nas coisas, sendo mais capaz de aceitar a verdade.

           Meg compreendeu o que ele afirmava. Havia ponderado que formas alternativas de relacionamento entre homens e mulheres eram opções válidas para certos credos religiosos ou códigos culturais diferentes do que conhecia até então. Mas pensava que Patrícia, assim como ela mesma, não havia feito aquela opção e assim aconselhava-a a voltar a viver com a família, pois tudo aquilo a fazia sofrer. O que ocorria porém era que Patrícia utilizava os seus conselhos e argumentos como contraponto. Era como se o que Meg dizia espelhasse as suas próprias reservas, que a paixão por Paco levava a combater, uma vez tendo se apresentado a oportunidade de contrafazê-las atribuindo-as a outra pessoa.

-          Pois isso não era o que eu queria. Se você quiser saber acho muito errado...

          Ele sorriu, interrompendo-a:

-          Olhe para o sol, agora! Eu sei que você tem o que dizer mas olhe para o sol, não fale agora, deixe para depois, olhe, olhe!

           Meg considerou que ele poderia ser um tipo meio louco mas sua voz era tão mansa e insinuante... Ela olhou par ao sol que se escoava pela tarde azul. Então voltou a encarar o rapaz de barba alourada e cabelos longos que sorria brandamente.
            Ela ia continuar no ponto em que se havia interrompido mas percebeu que seu ímpeto belicoso havia mudado. Estava alegre, entusiasmada, sem saber porque.

-          Você tem algo a fazer. Será muito perigoso. Você não poderá vir conosco. É apenas uma companheira antiga. Como se fosse um parente que sabemos que lembra de nós com carinho mas que mora em outro país. Mas você tem força, tem valor. Não desista. Quando a viagem da noite não for longa não olhe para trás. Alguém protegerá a caminhada. Tenha confiança. Mas o resultado não está previsto. Ninguém sabe ainda... Enviarei bons pensamentos. Desejo que você consiga fazer o que terá que fazer. Adeus.

             Antes que ela pudesse responder qualquer coisa ele havia entrado no quarto e fechado a porta. No ida seguinte o grupo de hippies se mudou e Meg não mais soube deles.
              Aquela conversa com Paco marcou assim a mudança que a fazia, estando já curada, envolver-se com a peregrinação orientada pelas quadrículas de classificados dos jornais. Procurava emprego andando, andando... Tantos lugares, tantas entrevistas... Olhavam para ela como se fosse uma mercadoria na vitrine e avaliassem se era mesmo vantajoso adquirir ou não.
               Conferiam seus papéis, perscrutavam suas respostas hesitantes, computavam suas unhas, sua saia-blazer uniforme de campanha. A depressão que se seguia a cada uma destas entrevistas não era contornável nem mesmo pela conversa espirituosa do Dantas. Ela estava se afundando na superfície do trânsito, das salas de espera monótonas, das fichas a preencher, dados e mais dados, testes psicotécnicos, vazios e entediantes, falsos: “minha mãe é uma boa mulher: verdadeiro ou falso?”, “Eu aprovo o homossexualismo: falso ou verdadeiro?”, “Eu amo meus pais?”, “abcg, abcf, abc?”.



IX


       A teia depressiva se estendia pelo quarto no silêncio das noites em que ela se sentia no exterior da casca do mundo, uma tentativa de rolar pelas bordas e entrar sempre frustrando-se na lisura das paredes monotonamente curvas, sem culminância. Sombras tênues evolviam na insônia enquanto Meg desistia de chorar e era tudo apenas o escoar das horas sem pensamentos, sem palavras, a pura unidade vazia da transparência escura, a noite, a madrugada.
       Acordava com os endereços a percorrer, o sim/não exorbitando em seus sentidos moles, acompanhando as curvas da ansiedade no trânsito lento dos ônibus cheios até chegar em alguma sala onde fisionomias frias guardavam o selo do seu destino que o trânsito protelava conhecer. Então esperava, alguém sorria, o não vinha polido e insinuante como um presente de aniversário e era preciso sorrir também, dar meia volta, começar tudo novamente alhures.
       Agora deixava-se ficar entre uma entrevista  ou outra, não mais à procura, como antes, quando o fundo otimista dos passantes na cidade iluminada por calçadas e letreiros a incitava a prosseguir, visitar, incluir. Agora deixava-se ficar no quarto, deitada, olhando o vazio, a teia depressiva constituindo-se mais e mais por sobre si mesma e ela observava a trama envolvente dos fios se recobrindo, progressivos, fechando espaços, coalescendo continuamente, formando uma concha, ela estava no meio da concha não –transparente, opalescente, ficando opaca, a luz escapando pelo meio das nuvens no desvão da janela aberta sobre o nada eterno, tão aconchegante aquela tendência a se abolir, a se evanescer, a ficar só olhando a tarde que se esvai, desbotando, o mistério do tempo, do instante perpassante, o agora sem espessura, escritura pura, estandarte da arte...
         Comprou um caderno onde anotava coisas como “A face do mundo é um sonho do luar”.
         Célia comentou:

-          Menina vê se arranja alguma coisa para fazer. Tristeza não compensa, vê se não se entrega...

         E o Joaquim Dantas vinha contar os casos do dia incitando-a a sorrir com ele. Meg o observava com olhos de quem habita uma outra era. Até que ele exclamou:

-          Você tem que sair dessa fossa, minha filha! Vamos lá, compre uma roupa, vá ao cabeleireiro, levanta esse astral!

          Ela só pensva em Rui, na casinha do passado, eventualmente em Leonardo, no que havia esperado ser e jamais seria... Agora como encontrar um eixo em torno do qual se reconstruir? A superfície espelhava rostos-máquina com fichas quadriculadas à espera para capturar os códigos e digerir os seus conceitos a fim de transformá-los em hiatos intransponíveis. Ela deveria assim também se maquinar, também  recobrir-se do impessoal, olhar sem ver, dizer não e sorrir, desdenhar, não sentir... Técnica, ousadia, arrojo e audácia – ela reencontrava Rafaela em todos os rostos de secretária que lhe estendiam as fichas de inscrição e a mãe estava por trás de todas as psicólogas que a entrevistavam prontas a fazê-la esperar a semana seguinte ao teste para enfim confirmar-lhe a negação. O inferno era pois muito frio, ao contrário do que havia deixado para trás  - o lago de fogo e enxofre que devia ser a convivência com Rafaela no botequim do Mauro...
           Contudo era jovem, a vida tinha seus meandros e rugia em seu corpo vigoroso. Foi ao cabeleireiro, experimentou roupas novas, lembrando-se de Jaqueline enquanto se via mais bonita no espelho. Sua imagem se oferecia a ela como uma promessa ou um pedido: deixa-me viver. Confrontava-se consigo mesma. Quem era real, ela ou a imagem que afinal era somente o que todos viam? Seus sentimentos eram um excesso que não cabia nas fichas de inscrição. Uma ficção de que ninguém precisava. Um apêndice desnecessário que ela tinha que extirpar  para que a imagem vivesse, ganhasse um emprego, se misturasse às outras imagens sem surpresas nem estranhamento.
            Assim conseguiu um lugar como representante de vendas em uma firma de representação de uma fábrica de presentes.




3


              I -



        Aquele lugar era  obscuro, mais antigo, não se assemelhava completamente às salas de escritório das firmas que estava acostumada a percorrer. Parecia de um outro tempo, a atmosfera continha algo de mais lento e fortuito, como se houvesse sempre alguma coisa de oculto por trás das cortinas.
         O homem que conduziu a entrevista era pequeno e gordo, moreno, com cabelos grisalhos. Fazia-se acompanhar da mulher mais alta do que ele, pele clara, cabelos pintados de cobre, robusta, todo o seu aspecto transmitindo uma sensação tenra, flácida. Moira possuía, não obstante, um modo de falar incisivo, imperativo e estudado que a fazia parecer astuta. Havia três moças presentes ao processo seletivo desenvolvendo-se com extrema informalidade.
         Não, nada de testes,  apenas o registro de dados: nome, endereço, número de documentos. Uma das moças disse que seu emprego anterior fora no comércio de “papéis”. Pelo que se seguiu Meg compreendeu que ela havia atuado com aplicações financeiras. O homem – Senhor Guedes – a desencorajou: “Nossa margem de ganhos é vantajosa mas não está no mesmo patamar. Sugiro que você tente outra coisa mais compatível com a sua pretensão salarial”. Após alguma troca de palavras em que ela especificou seus gastos habituais acabou concordando com ele e retirou-se.
             Meg e Letícia foram aceitas. Ganhariam conforme uma percentagem relativa aos pedidos que lograssem implementar a partir das visitas a papelarias e lojas de presentes, mais uma quantia diária a cobrir gastos com transportes e refeições. Levariam uma bolsa com amostras de mercadorias, tal mostruário contendo cinzeiro, porta-lápis, balde de gelo, peso para papéis, porta-clipes, porta-notas, uma taça e outros ítens perfazendo uma lista de coisas em vidro ou acrílico de que agora elas detinham a responsabilidade.
             Na manhã seguinte iniciavam. Na mesma semana o Senhor Guedes providenciou um milheiro de cartões com seus nomes reduzidos a um mínimo de dois termos facilmente memorizáveis: Meg Nascimento, Letícia dos Anjos.
            O Senhor Guedes as acompanhou naquela semana de estréia como representantes da fábrica instalada em outro estado. O trabalho consistia basicamente em conversar com os compradores ou gerentes das lojas, mostrar os produtos, discutir preços e esperar que fizessem algum pedido de peças ou que marcassem nova visita para resolver a questão dos possíveis descontos. Por vezes ocorria um “não” peremptório mas a maioria queria tempo para pensar.
            Letícia era uma moça da idade de Meg, os cabelos curtos muito claros, anelados por volta da face em que lábios carnudos acentuadamente vermelhos contrastavam com a pele alvíssima, a expressão cândida parecendo pura, inocente, juvenil, frágil, em tudo e por tudo combinando com o sobrenome devido ao aspecto angelical. Era religiosa, devotando-se a uma seita protestante bastante popular.
          O Senhor Guedes era um homem simpático, bem falante, um tipo explícito de vendedor urbano, sua figura dextramente gingando em meio aos tabuleiros de ambulantes, aos inúmeros transeuntes, aos carros detidos nos sinais. Vestia ternos que se amoldavam de tal maneira ao seu corpo pequeno e obeso que mais pareciam robes de chambre, com tecidos usados acentuando a impressão de antigo levemente deslocado que se depreendia dele. Entrar com o Senhor Guedes nas lojas, esperar que o atendessem, presenciar as transações de oferta, cuidadosas observações do material do mostruário, procrastinação e tudo mais, era algo ao mesmo tempo fastidioso e excitante. Meg e Letícia deviam observar  apenas e então em algum momento estariam por si mesmas a repetir todo o ritual.
         Todo o ritual. Era chegar, esperar ou ser esperada por Letícia, pegar a bolsa do  mostruário e por-se a caminho. A cidade costumava aparecer primeiro vazia, as ruas sugerindo ainda o sonho da noite anterior, sempre vagas as ruas como sonho não de todo lembrado, apenas possível, solto nas portas gradeadas das lojas ainda não abertas. E depois era o movimento contínuo de encher-se as ruas de gente, as portas descerrando-se, as lojas oferecendo-se limpas, como se novas todas as manhãs.
          Letícia falava sem parar.

-          Olha ali o tabuleiro dos cigarros! – Apontava para algum camelô oferecendo cigarros avulsos a centavos cada. – Mas eu não vou comprar cigarros. – Resolvia, afastando-se após uma meia parada como se estudando a fisionomia anônima do camelô.

-          Cigarro é pecado, eu estou conseguindo largar o vício com o poder da oração.

          Meg assentia. Era engraçado pensar em Letícia fumando, com aquele seu ar celestial, apesar da boca vermelha, sublinhada com batom, exageradamente carnuda, voluptuosa.

-          Eu tive uma visão quando ainda estava na dúvida se fumar era mesmo pecado conforme o pastor falou. Eu ia pôr o cigarro no cinzeiro. Aí quando eu fui pegar novamente eu vi uma mão peluda, negra, segurando – o no ar! Quando olhei outra vez o cigarro estava no cinzeiro, no mesmo lugar! Mas eu nem quis mais fumar, é claro que é o inimigo que quer que a gente fume – ela concluía, com firmeza, prosseguindo com Meg na andança pelas lojas do centro da cidade.

            Letícia era mãe solteira. Tinha uma menina, ainda um bebê de um ano e meio.

-          Minha mãe cuida dela para eu trabalhar e estudar. Mas está tão complicado... fico tão cansada... Não sei se vou conseguir aprovação em matéria alguma.

           Olhava de soslaio mais algum tabuleiro de cigarros e continuava caminhando com Meg. Entravam em lojas oferecendo a mercadoria. A quantidade dos que queriam alguma coisa era assustadoramente menor dos que não queriam nada.

-          Isso é assim só no começo, depois melhora... – afirmava o Senhor Guedes.

-          As testemunhas de pano de saco... Fico me perguntando o que isso pode ser. Não sei porque mas me impressiona tanto... – Letícia revelava enquanto voltavam a andar procurando lojas.

-          “ Eles andarão pela terra, vestidos de pano de saco” ... – Ela repetia, lembrando o sermão ou o que havia lido no Apocalipse, Meg não sabia.

            Já estavam há duas semanas nisso e Meg se perguntava sobre as possibilidades reais do empreendimento. Não aspirava ao “patamar” da moça que trabalhava com “papéis” mas precisava certificar-se de que haveria retorno suficiente para alugar uma casinha, por pequena que fosse, manter Rui na escola...
          Seus pensamentos não estavam claros, ainda, sobre isso. Não só lhe parecia duvidoso, pelo modo como vinha sendo a pouca receptividade das lojas, que chegasse a constituir o valor necessário, mas também a própria natureza da rotina que lhe parecia ideal dentro das circunstâncias revelava-se contraditória quanto ao que realmente queria para ela mesma e, principalmente, Rui. Meg lembrava-se como a escola o cansava, como lhe parecia sempre uma imposição. Com os avós, ela sabia, ele tinha tudo, poderia freqüentar uma escolinha apenas à tarde ou pela manhã, não a rotina brutal da creche o dia inteiro. No entanto, como poderia ela sustentar-se e a ele, se não trabalhasse? A pensão que Humberto devia dispensar a Rui não cobria nem metade das despesas. Meg temia que seu filho afinal preferisse a companhia dos avós.
        No entanto a atitude de Humberto não podia ficar assim, como se houvesse sido certa. E Meg amava Rui, amava o filho mais do que a si mesma. Sabia que ele deveria estar sentindo o afastamento da mãe. Não podia imaginar o que lhe havia sido dado como desculpa para justificar. À noite Meg imaginava-se indo até a cidadezinha dos pais de Humberto, abraçando Rui e dizendo tudo o que sua revolta queria: “Vocês são uns canalhas!” – isso era ainda o mínimo. Seus pensamentos prolongavam os protestos, argumentos, ofensas, enquanto a noite prosseguia, até adormecer.

-          Oi, Meg! Posso falar um instantinho com você? – Gloria se aproximava, enquanto Meg trazia o prato feito do bar da esquina, voltando das andanças pela cidade, à noitinha. Sorriu para ela. Gloria era simpática e às vezes vinha ao seu quarto conversar um pouco. Bonita, o cabelo solto, cheio, pintado de loiro, a pele bronzeada, estatura proeminente, usando roupas excessivamente coloridas e coladas ao corpo, Gloria era sempre objeto dos olhares masculinos.

-          Estou querendo ver se você me empresta uma blusa, sabe, amanhã é sexta-feira, vou a uma festa com um cara que eu conheci numa das casas em que estou trabalhando... – Gloria relatou todos os detalhes eróticos do seu encontro enquanto Meg se ocupava com o jantar, cansada, e ela revolvia as roupas nos cabides.

          Panos coloridos se sucediam à medida em que Gloria os examinava e tornava a guardar à procura de algo que a agradasse.

-          Ah! Essa é bacana... – Afinal pareceu ter encontrado algo a contento e, concomitantemente, Meg pousou o prato na mesinha de cabeceira.

            Gloria agora descrevia o rapaz com que iria à festa. Meg estava acostumada com aquilo. Sempre a mesma coisa. Gloria conhecia alguém com quem imediatamente transava, depois seguiam-se alguns encontros. Neste período seu entusiasmo chegava ao auge e ela tinha que contar tudo, demorando-se em cada detalhe, detendo-se nas particularidades da aparência, ressaltando aspectos que a faziam vibrar. Depois tudo parecia esquecido. Gloria ficava alguns dias quieta, uma moça pobre, comum, ganhando o seu pão suado, cotidiano. Então tornava a conhecer alguém e o ciclo recomeçava, tudo igual.

-          Meg, vamos dar um passeio, vamos!

            Meg surpreendeu-se. Não costumavam sair juntas. Aliás Meg há muito tempo conhecia apenas a rotina casa-trabalho. Estava cansada, um pouco chateada com tudo... Gloria parecia tão vivaz, despreocupada, livre... Meg concordou.
              A noite estava fria, já em pleno outono, mas seca e sedosa, elástica, as coisas dando a impressão de um néon deslizante quando chegaram à avenida, no Centro, poucos passantes àquela hora mas milhares de carros em alta velocidade tornando tudo repleto de  possibilidades.

-          Vamos a um restaurante. – Meg convidou. Pensou em beber alguma coisa, conversar um pouco em algum lugar tranqüilo e aprazível.

-          Ah, nesses lugares eles reparam na gente... – Gloria comentou. Meg compreendeu o ponto de vista dela. Aquele tipo de coisa era algo comum no universo que era o seu, de Rafaela,  das amigas da revista... Mas Gloria não pertencia àquela esfera. No entanto Meg não estava disposta a acompanhá-la a um lugar qualquer que também não era o seu. Assim caminharam um pouco tomadas pelo impasse. Meg lembrou de uma lanchonete com espaço para chopp. Parecia um meio termo apropriado ainda que não exatamente o que Gloria poderia ter pensado. Contudo aquilo para ela semelhou algo novo, a perspectiva pareceu-lhe excitante e Gloria concordou.


II-


               O lugar era amplo, muito iluminado, algo heterogêneo. O salão repartia-se conforme os setores de confeitaria, freqüentado por donas de casa e pais de família, de café e lanches ligeiros, freqüentado por homens de negócio e pessoas em trânsito pela cidade, e um recanto com mesas e cadeiras em que serviam chopp e outras bebidas, tira-gostos e coisas assim. Inversamente ao que acontecia durante o horário convencional de trabalho, agora era o setor das bebidas o mais freqüentado e ocasionalmente ainda havias pessoas no de café, com o de confeitaria praticamente inabitado.
              Gloria parecia extasiada como se estivessem em um templo ou qualquer lugar excepcional. Sorria amplamente para tudo e todos, olhava à volta com um jeito inclusivo, envolvente, falava alto, provocativa e nervosa.
             Um grupo de rapazes chegava, um tanto inevitavelmente ruidoso. O garçon trouxe os chopps e Meg deixou-se estar, procurando absorver a quietude que o movimento de pessoas transmitia aos seus sentidos, a despeito da aparente agitação de Gloria redobrando de intensidade com a aproximação dos rapazes que se assentaram próximo a elas.
Gloria reposicionou-se de modo que sua cadeira se projetava agora quase no meio deles. Não detendo-se apenas nisso ela se lançava por  meio de gestos, palavras soltas, gargalhadas altas. Meg começou a sentir-se constrangida. Os outros não pareciam registrar o que estava ocorrendo mas Meg tinha a impressão de que todos olhavam  desaprovativamente. Contudo os rapazes não se mostraram indiferentes e logo havia uma troca de alusões debochadas entre eles e Gloria.
Meg não imaginou que ela pudesse estabelecer contato com tanta facilidade mas logo os rapazes, convidados por Gloria, trocavam de lugar e as rodeavam na maior hilariedade. Meg não sabia o que fazer, não ousava olhar de frente como que concentrando-se infinitamente no conteúdo do copo de Chopp.

-          Meg! Há quanto tempo... – Alguém tocou em seu braço e ela reconheceu a expressão jovial do rapaz que a saudava.

-          Gera! – Esclamou, sinceramente surpresa. O apelido soou quase que por automatismo como se a pudesse transportar a um outro tempo e lugar, à época mítica da escola. O rapaz, que se chamava Geraldo, era magro, os cabelos crespos, grossos, escuros, contrastando com a pele clara. Seu rosto possuía uma expressão de perspicácia um pouco melancólica.

-          E aí, menina, como é que é? – Ele falou procurando estabelecer um clima cordial.   

                     Meg sorriu. Gloria soltou uma risada espalhafatosa entre dois amigos de Geraldo. Meg voltou a encará-lo, preocupada com a atitude de Gloria.

-          O que você tem feito? Onde está estudando? – Ele perguntou.

-          Estou trabalhando. -  Meg comentou sem querer detalhar mais os aspectos do seu cotidiano e assim procurou mudar o sentido da conversa.

-          E você? Já está na engenharia? – Ela provocou, implicitamente fazendo menção à brincadeira antiga dos tempos do colégio em que, por conta de um comentário dele, todos ironizavam a sua pretensão de vir a ser engenheiro  quando se tornasse adulto.

-          Estou. – Respondeu, com convicção, como que dando a entender que desejava contrafazer a brincadeira impondo-se como uma verdade.

             Meg congratulou-se com ele, admirando-lhe a atitude. Não simpatizava de todo com Geraldo. Havia algo nele que lhe parecia esquivo, demasiadamente frio e impositivo. Porém, não tinha aparentemente porque antipatizá-lo. Sempre se mostrara correto e Meg lembrava-se de que ele a havia cortejado dentro dos limites que a idade, doze anos, havia imposto na ocasião. Mas aquilo fora notório e todos no colégio comentavam o fato dele esperar por ela sempre, durante o período da côrte, para  acompanhá-la até em casa, segurando seus livros e conversando com acento fleumático, cavalheiresco.
          Tornara-se corrente a expectativa da sua “declaração” mas Meg não queria namorar com ele. Assim quanto tudo parecia inevitável combinou com as amigas para fazerem o trajeto até em casa de modo a evitar a iniciativa de Geraldo. Ele compreendeu a atitude dela e não insistiu. Logo depois vieram as férias. Sua juventude desabrochou nesse ínterim e no ano seguinte ela se envolveu com Humberto. Agora reencontrava Geraldo, crescido, adulto praticamente, como ela, efetivamente estudando engenharia.
        Pensando nos seus problemas atuais, num relance, Meg teve a impressão de que tudo era mesmo irônico, um sentido insuspeito parecia mover o mundo de modo imprevisível.
         Gloria levantou-se com um dos rapazes.

-          Meg, o Silvio vai me levar para conhecer um lugar ma-ra-vi-lho-so! – ela falou com voz exageradamente arrastada, como se vestisse uma personalidade provisória de pin-up. – Vamos com a gente, o Silvio está de carro, deixamos você na Célia. – ofereceu.

-          Pode deixar que eu levo a Meg em casa. – Geraldo respondeu imediatamente. Sua voz continha uma nota imperativa, peremptória, que intimidava as pessoas.

                     Aquiesceu passivamente. Pensava agora apenas na incongruência do fato de sobrepor-se assim Geraldo e a pensão de Célia, como se fossem retalhos de tempo impossíveis de se completar em uma peça única, um tecido original que no entanto deveria talvez ser ela mesma na casa da infância. Quase sem pensar disse a ele que estava morando no endereço que na realidade era o da casinha que a mãe vendera no mês anterior.
                     Então pensou, com certa audácia,  que preferia até formular o endereço da casa da infância mas como ele possivelmente ainda morava naquele mesmo bairro  não seria seguro arriscar pois ele provavelmente sabia que ela havia mudado. Pensou também que seria excitante de certo modo caminhar e pegar o ônibus no meio da noite, da casinha até a pensão, depois que ele a deixasse, como refazer em linha reta, de um só golpe, o caminho que ela havia feito conforme os elos do destino, passo a passo, naquelas semanas.
                Geraldo riu de um modo oblíquo enquanto ela entrava no carro. Meg prestou atenção aos seus movimentos compassados, elásticos e tentou reparar nele como um homem, não tanto como o colega da escola. Seus cabelos crespos muito escuros eram cuidadosamente alinhados sobre o rosto pálido. O contraste acentuava o traço melancólico insinuado na expressão de uma atenção aguda, como cobra prestes a dar o bote, alguém capaz de perseguir com acurácia qualquer enigma ou ponto duvidoso. O corpo retesava-se a cada gesto, como se os músculos obedecessem a uma compostura rígida. Compunha uma silhueta agradável de se ver, sem dúvida atraente. Lembrou-se então, involuntariamente, de Leonardo, com sua pose tão à vontade, seu jeito simpático, encantador. Eles pareciam o inverso um do outro. Meg sentiu que amava Leonardo, apesar de tudo, do tempo, da distância...

-          Então você está morando neste bairro... – Geraldo falou com uma voz que lhe soou extremamente branda, de algum modo incompreensível levando-a a tentar defender-se:

-          É, pois é, nós mudamos, eu e a minha mãe... – Meg não queria falar do pai e procurou novamente desviar o assunto. Geraldo ligou o toca cd no carro , a música de bom gosto, lenta e atual, num volume educado, convidando a relaxar. Havia um cheiro delicioso no ambiente. A noite se mostrava promissora, mágica e intensa, com o ar flutuando suavemente à volta, as estrelas tremeluzindo no céu limpo em que algumas nuvens apenas esgazeavam. Contudo ela se sentia sempre na defensiva.

-          Eu entendo... – Geraldo guiava com destreza, sem parecer fazer qualquer esforço para concentrar-se. Mas à Meg sua naturalidade e calma pareciam desconcertantes.

-          E a engenharia? – Ela perguntou procurando não se deixar levar por aquela sensação desconfortável. – É assim mesmo como você imaginava?

              Ele sorriu. Seu semblante ostentava uma expressão distante, quase triste, que Meg não conseguiu decifrar.

-          É, pode-se dizer que sim. – Ele falava como se também não quisesse estender o assunto e Meg sentiu-se ainda mais afetada. Veio-lhe a idéia de que ele a julgava incapaz de entender o que quer que tivesse a ver com seus estudos. Havia algo impenetrável entre eles, ligeiramente exasperante. Meg respirou fundo, sentindo-se tensa.

           Concluiu, após uma breve reflexão, que os seus sentimentos possivelmente estariam relacionados à mentira, ao fato de ter mentido quanto ao endereço. Na verdade não sabia mais porque o fizera. Parecera-lhe algo apropriado antes mas agora era como se a falsidade estivesse entre ela e o seu próprio ser, todo o desajuste da sua vida, os conflitos e contradições que vinham permeando os fatos estando todo este tempo ocultos atrás de uma porta que a mentira havia repentinamente destrancado. O silêncio era também enervante. Os modos de Geraldo, calado, metódico, a noite envolvendo-a, a perspectiva de ter que refazer todo o caminho da casa antiga à pensão de Célia, tudo lhe pareceu aterrorizante.
          Por nada deste mundo iria ela confessar que estava mentindo, porém. Mais do que qualquer coisa que pudesse parecer absurda, a idéia de sobrepor Geraldo e o tempo do colégio à entrada da pensão de Célia na favela semelhava o caos. Surpreendendo-a ele anunciou:

-          Bem, chegamos... Não é mesmo? – Meg constatou que efetivamente estavam em frente à casa em que havia morado. Torcendo para que nada pudesse tornar inverossímel a aparência de que ainda morava ali, procurou despedir-se:

-          Nossa, nem reparei que já estamos aqui! Olha, Geraldo, obrigado pela carona. Agora é melhor você ir porque a minha mãe não gosta que os vizinhos reparem se você ficar esperando eu entrar, você sabe como são essas coisas...

           Ele riu novamente, olhando para ela com expressão novamente indecifrável. Meg se sentiu ainda mais desconfortável. Ele a encarava de modo incisivo, como se a estudasse, como se ela fosse um germe no microscópio, uma incógnita numa equação.

-          Meg... – Estendeu a mão tocando-lhe a face. Sem que ela previsse inclinou-se para beijá-la.

           Meg sentiu os lábios dele de modo inequívoco, a noite curvando-se ao redor, fechando-se sobre ela. Não queria que ele a envolvesse. Não devia ter se deixado atrair àquele lugar, àquela hora. Procurando não parecer brusca, afastou-se.

-          Por favor, não. – Ela falou, constrangida. – Desculpe. – Não havia o que dizer. Não queria magoá-lo. – Eu estou cansada. Outro dia a gente se vê. – Balbuciou, tentando abrir a porta do automóvel. Mas ele estendeu o braço de modo que sua mão fechou-se sobre o vão da janela impedindo que ela saísse.

-          Espere, Meg. Nós ainda temos muito o que conversar.

           Abruptamente pôs o veículo em movimento. O nervosismo dele agora era óbvio, como se houvesse abandonado a máscara da calma aparente.

-          Que é isso, Geraldo? Pare o carro, eu moro aqui! – Ela falou, aflita.

           Ele riu, agora sem esconder o sarcasmo.

-          Pára com isso, Meg. Você não tem vergonha de mentir assim descaradamente, não?

            Meg percebeu que algo muito sério estava em marcha. Como ele sabia que havia mentido? Mas logo dominou-se. Ele não devia saber. Talvez ele não estivesse se referindo  à mentira real mas pensasse apenas na sua recusa como falsa.

-          Você está louco, Geraldo? De que mentira você está falando? Eu não...

-          Você não... – Ele arremedou o seu tom de voz. – Você não mora nesse bairro, Meg! Você mora no cortiço da Célia, na favela.

            Meg olhou-o, estupefata. O carro avançava silenciosamente na noite. O tráfego reduzido àquela hora fez com que se sentisse indefesa, a sós com ele.

-          Eu sei tudo sobre você, Meg.

-          Como assim, Geraldo? – Ela subitamente recuperou a decisão interior. Algo em seu coração se impôs, íntegro, incoercível, uma vontade de lutar que transpareceu na voz. Geraldo a olhou de relance, como que instintivamente detectando o seu novo ímpeto.

-          Ah, Meg... – Ele respirou, deixando-se levar por tudo o que tinha a dizer.

-          Eu nunca aceitei você e o Humberto, a doideira das coisas que você fez, casar,  ter filho... Eu segui você o tempo todo, eu sei de tudo o que aconteceu. Aquele cara, na praia... Essa besteira de morar naquela espelunca... Porque você mentiu? Porque não confiou em mim? Porque você não me beija?

-          Porque eu não amo você. – Ela pronunciou as palavras, quase com ferocidade. O modo como ele falava a enfurecia. Que direito tinha ele de espioná-la?

-          Mas de um modo ou de outro você vai fazer tudo o que eu quiser hoje, Meg. – Ele asseverou, friamente.

-          O quê? Você está pensando em me agarrar, contra a vontade?

             Ele tornou a rir, interrompendo a expressão amarga com um esgar zombeteiro.

-          “Me agarrar”... Eu vou transar com você, de qualquer jeito.

-          Não vai, não! Eu vou gritar!

-          Pouco me importa. Eu tapo a sua boca.

-          Mas você está doido! E depois você vai preso. Dou queixa!

-          Isso se eu te deixar viva.

              Meg pensou que ele não podia estar falando sério. Mas ao mesmo tempo a ameaça era real. Uma voz lhe dizia que deveria se apavorar, chorar, pedir, implorar. Uma força explosiva a tomou.

-          Seu tolo! Que é que você pensa que vai conseguir com isso? Eu nunca vou amar você. Mas eu podia te admirar, eu podia sentir afeição, amizade... Agora com essa atitude você só terá o meu desprezo.

-          Meg, eu sei que você é prostituta, como a Gloria. E se você sai com qualquer um porque não comigo?

-          Você está mesmo completamente maluco. Não sabe o que fala. Que é que faz você pensar uma coisa dessas? Eu não sou prostituta!

-          Claro que sim. Você mora na favela! No mesmo lugar que a Gloria, estava até com ela na lanchonete e todo mundo sabe da Gloria.

          A declaração inicialmente a chocou. Mas logo se agarrou  àquele detalhe: então ele não sabia realmente tudo sobre ela. Ele não sabia a verdade, afinal. Deveria haver ainda alguma chance...

-          Sabe de uma coisa, Geraldo? Tudo bem. Agora que você já sabe tudo, como diz, então sabe também quem é o meu homem, não sabe? – Ela arriscou.

-          Ah, pára com isso, que homem, que é que você está inventando agora?

-          Ué, então você não sabe de tudo? Como é que não sabe do meu chefe, o pior bicho solto dessa área? Pois olha, continua para você ver... Pode fazer o que quiser... Mas ele vai saber que foi você. Nós estávamos com a Gloria, ela vai te acusar.

-          E daí? Está pensando que eu estou com medo?

-          Pois eu se fosse você ficaria apavorado. Esse cara vai grudar os seus miolos com durex por cima da sua cabeça e deixar você balançando numa árvore dessas por aí.

-          Você está mentindo.

-          Claro que não. Toda prostituta tem um chefe, não tem? Pois o meu é sanguinário. Vai se vingar de você nem que seja no inferno.  Aliás, como é que você não sabe disso?

               Ficaram em silêncio. Meg estava consciente de que aqueles segundos decidiriam a sua sorte. Geraldo computava ferozmente as possibilidades. Mais à frente Meg percebeu que o carro entrava em um retorno.

-          Eu não acredito em você. Não tenho um pingo de medo. Mas, quer saber? Também não me interessa mais. Você não quer. Eu podia te fazer feliz. Até casar com você. Mas você não presta. Você... Ah, para que eu iria querer um troço desses? Mulher é o que não me falta.

-          Pare. Eu quero saltar aqui.

-          Cala a boca!

          Meg sentiu tanta raiva que quase chegava à indiferença sobre o que quer que fosse que ele pudesse fazer. Então, como um milagre, estavam trafegando nas ruas do centro. Ele parou em frente à lanchonete. Sem uma palavra abriu a porta do carro.
         Ela saltou e começou a andar, todo o nervosismo, a loucura do que havia ocorrido, desabando sobre os seus sentidos,  as pernas trêmulas, o coração aos saltos.



III –


-          Meg! Que bom que você chegou. Eu estava super-preocupada com você!

-          Comigo? – Meg encarou Letícia, enquanto subiam as escadas que conduziam à sala da firma da representação do senhor Guedes, na sobreloja do prédio.

-          Espere, moça! – Uma voz masculina soou, detendo-as antes que Letícia pudesse responder. Voltaram-se. O porteiro do edifício posicionava-se no pequeno e obscuro saguão fazendo sinais explícitos para que parassem. Após entreolharem-se de relance, num ato reflexo de perplexidade, elas focalizaram a atenção nele. O homenzinho franzino vestindo uniforme cinza-esverdeado informou:

-          O  Senhor Guedes falou para vocês pegarem o mostruário comigo. Deixou um bilhete.

          Ele se movimentou de modo a alcançar a bolsa com os objetos, guardada no balcão da portaria. Estendeu-lhes um envelope: “Voltaremos na segunda-feira. Deixem o mostruário com o porteiro. Guedes.”
        Meg e Letícia ganharam a rua ensolarada e ampla, como um alívio contrapondo-se ao saguão sombrio. Letícia  segurou o braço de Meg, falando com voz nervosa enquanto caminhavam:

-          Eu tive uma visão com você! O inimigo estava querendo te prender numa caverna. Você lutou com ele. Um ser celestial interveio e o expulsou!

-          Uma visão?

-          É, ontem à noite, mas eu estava acordada. Eu acordei e tive a visão então eu orei por você.

              Meg considerou a opção de contar à Letícia o que havia ocorrido na véspera. Descobriu então que o fato possuía ressonâncias complexas, como um nó na correnteza, evocando uma cisão interior que a percorria sem cessar.
                A noite a havia prostrado no silêncio do quarto, sozinha. Nem sequer havia chorado. Um vácuo parecia ter se instalado e procurou apenas refugiar-se na inconsciência do sono. Agora, no meio instante que se seguiu à declaração de Letícia, considerou seus sentimentos como uma tribo acampada à margem de um rio eterno.
           Aquilo que Geraldo dissera, as ofensas que havia proferido, estavam na outra margem e ela as divisava como uma parte de si mesma, não certamente como uma verdade, mas como a superfície deformada de um espelho, como aquilo que as pessoas – não aquelas com quem convivia agora, mas as pessoas a que estava habituada a ver como mais semelhantes ao que ela mesma pensava ser – julgavam. Porque morava na pensão de Célia a consideravam uma desclassificada!
           No entanto, e isto era talvez o mais desconcertante, a imagem deformada de si mesma inseria-se num mundo de imagens compossível aos seres que lhes correspondia. Aqueles mesmos seres, também estranhamente deformados. Os Geraldo, os Humberto, os Nelsinho... As pessoas normais! Os seus semelhantes de um jeito que Gloria e mesmo Célia não podiam ou não deviam ser. Contudo essas pessoas normais, havia positivamente algo de muito errado com elas. A deformação dos seus juízos terminava por alterar-lhes a imagem determinando aquela outra margem do real em que também ela surgia deformada sob a ficção de conceitos inteiramente falsos.
         O que mais surpreendia nesses conceitos não era o seu erro, a sua falsidade. Era sim a fantástica leviandade com que se os formulava, o completo desprezo pelo que deveria ser o mais importante, a vida, a vida humana! Seres capazes de tal desprezo, de tanta baixeza no julgar, como poderia ela continuar a pensar neles como  “seus” semelhantes? Não havia mais como estabelecer setores: O colégio e os Geraldo, de um lado, Célia, Gloria e a favela, de outro. Havia simplesmente vontades que se interpunham no vai e vem da existência e enquanto algumas destas revelavam-se deformadas pelo niilismo, como buracos negros por vezes super-alimentados ocupando nichos no sistema, peças azeitadas no jogo do status quo, por vezes marginais procurando apenas manter-se à tona na superfície metralhada dos seus desvios longamente adquiridos nas vertentes da miséria, outras havia que se amoldavam à beleza imensa da força viva, à riqueza inesgotável habitando uma simples folha de árvore ou uma idéia justa, uma palavra verdadeira, um gesto de carinho, uma real apreciação do valor pleno pertencente ao existir.
        Estes habitavam a margem dos seus sentimentos. Letícia, sem dúvida, estava ali.

-          Você está bem? – Letícia perguntou, parecendo genuinamente interessada.

-          Tudo bem, Letícia. – Elas continuaram a andar. Meg queria analisar aquele dado novo – a outra margem na qual ela não era ela mesma sendo no entanto um espaço em seu próprio ser. É claro que as pessoas podiam se enganar, considerava. Mas não se tratava apenas de um erro de julgamento. Era um efeito devido àquilo que a constituía se pensasse em si mesma apenas como uma soma de fatos. E o que era aquilo? O que determinava a pensão de Célia, a bolsa de mercadorias que carregava agora junto com Letícia, andando, andando infinitamente sob o sol em meio à multidão como se tudo se resumisse a um deserto escaldante, inabitável?

-          Você está com algum problema, Meg. O que é? Pode desabafar, me diga o que há de errado.

-          Letícia, ontem eu tive um aborrecimento com uma pessoa que eu pensava ser um amigo. Mas no mais tudo bem, obrigado pela sua oração.

-          É mesmo? A gente tem que ter cautela, sabe? É por isso que dizem que às vezes os inimigos aparecem disfarçados de amigos.

              Meg concordou. A voz de Letícia, sua juventude e interesse genuíno, pareceram harmonizar-se com o reflexo da luz solar. A manhã finalmente despertou dentro dela e Meg abanou a cabeça desistindo de analisar o fundo contraditório da presença dual, querendo então ser simplesmente livre e alegre, na manhã de sol.
               Letícia olhou um tabuleiro de cigarros:

-          Meg, sabe o que eu pensei? Que se a gente devesse fumar então deveríamos nascer com uma chaminé na cabeça!

               Ambas riram. A hilariedade as tomou e se puseram aéreas, rindo desmesuradamente de tudo o que viam.

-          Vamos tomar um sorvete. – Letícia sugeriu.

-          Mas estamos com o dinheiro contado para o ônibus. – Meg respondeu. Naquela tarde deveriam visitar uma loja localizada em um shopping na zona sul.

-          Ah, é mesmo. Mas... O que você está achando desse trabalho, Meg? Sinceramente, eu não sei se isso vai dar mesmo certo.

               A marcha tornou-se então mais vagarosa. A luz coava-se por entre as nuvens na onipresença do sol. O calor atuava entre os passos incitando a uma fuga desordenada rumo à sombra e ao frescor vislumbrados na vontade. Porém sentindo-se confrontadas ao enigma, àquele trabalho, às suas vidas lançadas ali no meio do sol, deixavam-se ficar lentas na caminhada, os pensamentos adelgaçando-se na abstração de atos efetivos – andar, estar ali, com as mercadorias a oferecer e as lojas por visitar, o trabalho  real - virtualizado no resultado imprevisível – algum dia lograriam vender tanto quanto precisavam para viver decentemente? 

-          Não sei, Letícia. Quase ninguém compra  nada...

-          Também você já reparou nesses produtos? São meio...

          Meg a observou escolhendo as palavras:

-          Meio fora-de moda! – Letícia concluiu, decisiva.

              Andaram mais um pouco. Meg considerava o julgamento firmemente pronunciado. Pessoalmente não havia pensado em examinar o mostruário com aquela intenção crítica. Havia aceito aquele emprego, como de certo modo tudo o mais, de modo passivo, uma passividade estranha resultante das batalhas mais encarniçadas. Havia a necessidade, depois os obstáculos, alguma possibilidade surgia, ela agarrava-se àquilo para  logo descobrir que de modo algum seria satisfatório. Porque, ela percebeu, chocada, a necessidade é que estava fundamentalmente errada – o mesmo erro que à semelhança de um pântano, ela rodeava e rodeava, o mesmo que estava na raiz do que havia acontecido na noite anterior. Rafaela? Sua mãe? Pensar nelas agora, olhando o rosto de Letícia expectante a um comentário seu, era atordoante. Contudo algo muito claro se justapôs: elas eram como correntes do efeito, não as sentia como causas reais – o que era uma causa real? Olhou à volta, os eventos todos unidos de modo aparentemente casual – lojas, pessoas andando em todas as direções, o burburinho feérico do centro – sentindo-se um átomo, uma partícula fluindo no infinito.

-          Você não acha? – Letícia insistiu, trazendo-a novamente ao presente vivo.

-          É mesmo. – concordou, sem aderir ao sentido do próprio proferimento.

-          E o Senhor Guedes? – Letícia prosseguia como se algo a levasse insensivelmente a quebrar todas as barreiras pelo mero som das palavras: - Você acha que ele pensa mesmo que a gente vai conseguir vender todas essas bugigangas?

            Meg surpreendeu-se. A hilariedade anterior havia se convertido na pura ânsia de romper a casca das aparências e agora Letícia afirmava explicitamente a sua descrença.
         Aquilo mudou o rumo, alterou a tendência ao ver-se no vórtice do processo.

-          Tive uma idéia. – replicou Meg, repentinamente. – Eu trouxe uns trocados. Vamos tomar o sorvete, como você sugeriu.

-          Mas eu não trouxe nada.

-          Não tem problema, o que eu tenho dá para dois sorvetes.

         Recuperando a índole eufórica, entraram em uma lanchonete. O atendente depositou as taças no balcão. Meg, que havia automaticamente pousado a bolsa do mostruário no nicho talhado no balcão, subitamente reparou no espaço ocupado pelo volume. Com  uma intenção completamente nova se dispôs a olhar o conteúdo.

-          Estamos trabalhando praticamente pela refeição! O transporte não conta porque só usamos para as visitas. Vendemos o que, até agora? Meia dúzia de taças decorativas. Isso sem falar nos outros detalhes...

           Letícia continuava seu palrar confiante enquanto Meg observava os objetos.
           Eram rotundos, misteriosos, destacados do espaço. O porta-bloco-de-notas em acrílico fumée. O peso de papéis ovalado, a transparência deixando ver um amálgama de fios e tecidos coloridos no interior. Meg segurou-o. Apalpou a superfície lisa. Não havia toque, percebeu, intrigada. Era como se estivesse olhando uma forma pura. Mas a forma possuía uma intenção atenta, voltada para ela. Parecia uma advertência emanando de alguma autoridade despótica. Constrangida, abandonou-o no meio das outras mercadorias. O cinzeiro projetou-se então acima da superfície estriada  pelas protuberâncias das coisas jogadas em ângulos dispersos umas sobre as outras no interior da bolsa. O vidro trabalhado pousou na sua mão, amoldando-se. Contrariamente ao peso de papéis, não se impunha autoritariamente mas aconchegava-se numa carícia suave, comovente.

-          Você sabe o que ela falou de você?

          Meg repeliu o cinzeiro para dentro da bolsa. O objeto era na verdade invasivo com seu tom frio e cortante paradoxalmente induzindo a um estado de supremo enternecimento como o tempo em estado puro.

-          Ela falou que ele achou a sua roupa ridícula, mas ela gostou... – Meg compreendeu que Letícia falava de Moira e do Senhor Guedes.

-          Roupa? Que roupa? – Perguntou. O comentário não a feriu de imediato, tão absorta estava naquela janela interdimensional a que se havia transposto pela observação criteriosa da mercadoria que, agora que se voltava a inteirar do mundo circundante, corporificava-se num resultado positivo como se justificando a partir de que havia efetivamente um motivo para a inspeção e então ela podia anunciar que não, não considerava os objetos fora de moda, mas sumamente encantadores ainda que um tanto estranhos... Demasiado vivos... Desejando ver ali os contornos de um refúgio ouviu então Letícia contar sobre a semi-celeuma que um traje seu – um macacão cáqui estilo aviador – havia causado: o Senhor Guedes considerava-o uma provocação, um atentado às leis da feminilidade, mas Moira o havia aprovado, como a uma peça arrojada, uma prova de audácia. Meg jamais imaginaria que uma inocente indumentária que via como bastante comum pudesse suscitar tudo aquilo.

-          E a minha boca... – Letícia continuava. – O Senhor Guedes ficou olhando a minha boca, e falou “como a sua boca é sensual”...

              Meg novamente surpreendeu-se. O Senhor Guedes!

-          Mas ele estava te cantando assim, explicitamente?

-          Olha, Meg, eu não sei bem... Só que esse comentário me pareceu embaraçoso... – Letícia respondeu como se agora percebesse que Meg não participava exatamente da mesma altura do seu entusiasmo, sua extroversão. Mas a força daquele ímpeto era incoercível e ela começou a rir.

-          Acho que entramos bem, nesse emprego. – Formulou, afinal, o seu parecer. Meg continuou olhando para ela. Seria uma revelação? Então não  havia mais nada a fazer? Seria aquele momento um limiar?

-          Ah, Meg, vamos deixar para lá as visitas de hoje. Não vai dar em nada mesmo! Vamos curtir!

-          Mas e depois, Letícia? Você está pensando em pedir demissão?

             Letícia raspou com a colher as bordas da taça.

-          Não sei ainda. Temos que pensar. Mas mesmo que a gente continue, segunda-feira retomamos o serviço. Hoje vamos nos dar uma folga.

             Meg concordou e se deixou caminhar despreocupadamente com Letícia. Olharam vitrinis em Shoppings, comparando modelos de roupas. Falaram sobre as crianças. Almoçaram em um restaurante simples, toalhas quadriculadas e garçonetes prestativas com avental e gorros brancos encimando-lhes o cabelo.

-          Sabe de uma coisa? Acho que vou para casa. – Letícia anunciou.

-          Nesse final de semana vamos pensar bem no assunto, segunda a gente resolve se continua, se dá mais tempo para ver se a coisa melhora.

-          Tudo bem. – Meg aquiesceu. Na verdade não tinha idéia do que fazer.

         O emprego parecia-lhe inadequado, insatisfatório. Era óbvio que mais cedo ou mais tarde teria que encarar a realidade: estava apenas se sustentando, não havia lucro real, de modo que não se oferecia assim nenhuma solução quanto à sua necessidade, a premência de reaver Rui. Mas também seu estado emocional fazia semelhar o impossível a volta à rotina dos testes, qualquer mudança no cotidiano a que se havia ancorado como náufrago em meio à tempestade.
         Caminharam do restaurantezinho ao prédio da firma do Senhor Guedes. Letícia ria exageradamente. Meg, em certo instante, vislumbrou a sua face, rindo, alegre, feliz na tarde de sol e o semblante de Letícia pareceu irreal, uma imagem aureolada, suspensa sobre o sinal de trânsito no momento da travessia, o grupo heterogêneo de pessoas se amontoando e avançando à frente dos carros parados na avenida.
            Na soleira do prédio detiveram-se. Algo estava totalmente errado. O porteiro não apareceu, o saguão surgiu mais sombrio do que nunca, o coração de Meg sobressaltou-se. O que viera fazer ali? A bolsa! Haviam perdido o mostruário.



IV –

           O final de semana da expectativa pura: o que teriam que enfrentar na segunda-feira? Meg considerava a hipótese do Senhor Guedes exigir que restituíssem o valor das mercadorias.
           Não sabia como poderia fazê-lo. Examinando suas economias percebeu que tinha mesmo que trabalhar para sustentar-se e a Rui se quisesse reservar o dinheiro que recebera da mãe para arrumar a casinha em que esperava morar com o filho quando estivesse em um emprego que o permitisse. Na verdade não era este o caso da representação na firma do Senhor Guedes.
        Sabia que era preciso mudar, voltar ao tipo de procura que tanto a repugnava. Mas ao examinar-se a si mesma constatava-se indiferente, como se subitamente tudo parecesse demasiadamente pesado, imenso, gigantesco, acima de suas forças. Quem sabe as coisas melhorariam afinal, conforme o Senhor Guedes sugeria? Meg sondava este pensamento: não seria apenas um modo de se  enganar?
          Gloria apareceu algumas vezes, no auge do entusiasmo. Queria mais blusas emprestadas, estava num turbilhão de emoções devido à coincidência do par que arrumara na lanchonete, Silvio, tê-la convidado para a mesma festa em que já estava comprometida a ir com o rapaz que conhecera num dos seus empregos de faxineira.       
            Meg aconselhou  a simplesmente não ir a tal festa mas Gloria estava convencida de que poderia manobrar a situação se pudesse contar com a cumplicidade de pelo menos um deles. Inventaria que o outro era um noivo a quem pretendia dispensar. Assim o cúmplice entenderia se ela ficasse algum tempo na festa a conversar com o rapaz. Depois ela inventaria uma dor de cabeça e insistiria em pegar um táxi: o cúmplice estaria esperando, certo de que havia resolvido tudo com o pretenso ex-noivo. Meg não podia conceber como aquilo tudo poderia funcionar. Gloria nem parecia preocupada.
        Meg  preferiu nada comentar com ela sobre o incidente envolvendo Geraldo. Na verdade os seus modos esfuziantes a estavam cansando, preocupada em relação ao problema do emprego, à perda do mostruário.
          Curiosamente o Senhor Guedes pareceu muito compreensivo, na segunda-feira em que retomavam o trabalho.

-          Não se preocupem, apenas voltem aos seus postos. – Comandou, benigno. Mas Letícia não mais aderia à idéia toda de vender presentes nas lojas, estava farta de tantos “não”.

-           Meg, esse negócio não vai dar certo nunca! As lojas já têm os seus fornecedores certos, assim avulso ninguém se interessa. – Ela concluía. No meio da semana resolveu-se à demissão instando com Meg para que fizesse o mesmo. Então o Senhor Guedes ficou furioso:

-          O quê? Fiz cartões em seus nomes, nem levei em conta as mercadorias que perderam! Agora ainda vem me dizer que pretendem abandonar o trabalho? Ah, não! Isso não se faz. Vocês são umas irresponsáveis! – Contudo ele não podia prendê-las no sótão e assim Meg voltou à ociosidade preocupada na pensão: que fazer? Para onde ir? Como reaver Rui?

           Quase uma semana  depois o Joaquim Dantas veio despedir-se:

-          Ah, Meg, estou apaixonado! Vou com ele para a Iuguslávia.

-          Como é que ele é?

-          É loiro, lindo!

-          Como ele se chama?

-          Eu o chamo Xá da Pérsia, príncipe encantado, meu amor...

                   Meg compreendeu o estado exaltado do amigo, pontuando-lhe todos os gestos e expressões. O Dantas realmente viajou, mas não para a Iuguslávia e sim para a Venezuela. O amado não o acompanhou e o Dantas viajou sozinho, para esquecer.
                  Gloria também mudou. A festa havia sido uma confusão completa. O rapaz que inicialmente a havia convidado não permitiu que ela saísse sozinha e o seu pretexto de dor de cabeça não deu certo. Já o rapaz que a deveria esperar, ao ver que ela se acercava acompanhada, pensou que Gloria o estivesse provocando e manifestou sua fúria arrancando com o carro ruidosamente, raspando na traseira do veículo em que ela se encontrava, gritando xingamentos enquanto os deixava para trás. O que estava com ela no veículo praticamente a submeteu a um interrogatório, exigindo que explicasse a cena. Gloria procurou contornar o problema dizendo que se tratava de um “ex”.
                 O rapaz asseverou que não a deixaria, após uma explosão de ciúmes e loucura aparente. Parecia supor que Gloria fosse sua possessão. Ela não conseguia antepor-se à dominação dele, inteiramente. Voltou a morar com a mãe e até onde Meg soube, continuou o relacionamento com o turbulento rapaz.
               Novos inquilinos chegaram. Introspectivos, um homem e uma mulher que trabalhavam em escritórios, saíam pela manhã e voltavam à noite, casal reservado vivendo uma espécie de mundo íntimo.
                 Meg agora costumava sentar-se no pátio, onde havia tantas vezes conversado com Patrícia. Olhava o sol, respirava fundo e se perguntava por onde andariam os hippies.
                 Era como se simplesmente houvesse desistido de tudo. Sabia que precisava procurar emprego, cuidar da vida. Algo havia em seu íntimo, quieto e silencioso, imponderável, que parecia ter-se resignado a não-lutar. Mais do que isso, era  uma passividade que surgia como produto de uma decisão ativa. Não se poria como objeto, olharia as nuvens e observaria o curso do sol.
                Conscientemente procurava às vezes interpor-se àquele sentimento que não sabia como classificar. Planejava as atividades, comprar jornal, esquadrinhar entrevistas de emprego. Então pegava o ônibus, aquela coisa em seu peito se soltava e ela se punha a andar, a esmo, perambular por ruas novas em bairros que não conhecia.
              A princípio preferindo lugares grandes, movimentados, depois aprazendo-lhe as ruas tranqüilas dos bairros calmos, residenciais, até que se pôs a caminhar pelas ruelas que se ramificavam na favela, avançando pela região impossível, o caos das fachadas costuradas com zinco e pedras provisórias, crianças sustentando-se de esmolas, vendendo doces nos sinais de trânsito, fazendo malabarismos sob o cenho franzido dos motoristas, indiferentes, desdenhosos, levemente irritados. 
             Avançar assim por aqueles lugares cheios de escadas improváveis, completamente irregulares, os barracos se amontoando nas encostas, o sol a pino, era uma experiência ambígua. Havia a inacreditável palermice da miséria incrustada nas coisas como uma excrescência, uma inutilidade. A visão lá em cima era espetacular. Geralmente o mar, os arranha-céus circundando a orla, o azul, as nuvens supremas. Então uma ancestralidade emanava das paredes, das cores, dos desenhos feitos pelos jovens do povo, uma vontade de paz, de ser tudo simplesmente sempre assim... De ter sido assim em alguma eternidade da qual a humanidade havia se excluído, surgindo então um ser inteiramente novo – aquela espécie que habitava a visão, a orla e os arranha-céus, a visão possibilitada pelas escadarias labirínticas, pelas sobreposições confusas das casinhas de uma janela só.
               Como era possível os dois mundos coexistirem? Como se poderia considerar as coisas por um só ponto de vista? E os arranha-céus apontavam, a visão podia ser ameaçadora... As favelas eram o intolerado, a culpa, o inumano. Contudo, era o sustentáculo dos votos daqueles que faziam leis: como se poderia entender a legitimidades dessas leis?
                 Meg ponderava que se num país qualquer houvesse favelas e arranha-céus não se podia conceder legitimidade às suas leis. No entanto ela pensava que tal idéia a fazia singular. Os outros procediam como se o mundo fosse muito natural do jeito que vinha sendo, e assim ela se sentia ainda mais sozinha. Naquele meio interior de desistência, apatia, indiferença e observação pura tampouco importava ser como os outros ou não.

-          Meg, chega aí! – Ela estava sentada no pátio, contemplando o céu. Ouviu que Célia a interpelava e levantou-se, caminhando lentamente até à porta da sala.

               Célia acompanhou-a enquanto adentrava o recinto escurecido  pelo contraste com a amplidão da luz a que vinha de contemplar.

-          É o seguinte. – Célia anunciou, enquanto se assentavam. – Tem um lance que eu acho que pode te interessar. – Ela acendeu um cigarro. Parecia procurar as palavras. De repente pareceu mudar de rota. – Mas olha, se você não quiser, tudo bem. Na verdade eu não quero que pareça que estou te aconselhando a pegar, entende? É muito perigoso.

               O sol reverberava na tarde tranqüila esquecida no meio do tempo. Meg sentiu o coração bater forte, uma sensação de nervosa expectativa, à semelhança de estar no beiral de um precipício gigantesco ou à margem de algum acontecimento decisivo, final.

-          Tem uma encomenda... – Celia olhou-a como se avaliando a sua capacidade de compreender. – Ninguém quer fazer. A grana é  fabulosa, assim, em relação ao que se costuma oferecer nesse tipo de serviço... – Celia permaneceu  alguns minutos em silêncio, fumando.

              O nervosismo que Meg sentia e que lhe parecia inexplicável atingiu o paroxismo naquele meio instante de silêncio. A sala transmitia uma impressão húmida, quente, um espaço subitamente intransitivo que algum paradoxo tornava transparente como um meio de inúmeras interações e mudanças em marcha. Então Célia recobrou o ímpeto e recomeçou a falar, agora sem interrupção:

-          O lance é que há uma mercadoria para ser entregue. A pessoa que fizer o transporte não  precisa saber do que se trata nem quem está pagando. Isso porque o pessoal que requisitou o lance, que está comprando, a gente sabe que joga no meio, entendeu?

-          Como assim? – Meg perguntou, após um esforço supremo para dominar o nervosismo e se pôr numa atitude razoável de intercâmbio.

-          Faz jogo duplo. Compra a mercadoria, vende com lucro, faz todo o riscado ilegal mas também dá o serviço de quem vendeu. Por isso ninguém quer pegar, a gente sabe como os caras agem. Ao receber o lance eles fazem a pessoa sentar, passam a conversa, querem saber quem está bancando. Se a pessoa disser, está ferrado por um lado, se não disser se ferra também porque eles não deixam sair. Mas a pessoa pode inventar, dizer qualquer treta, só que aí eles visam, se for pegar qualquer outro servicinho, pronto, vão em cima no ato, para nunca mais...

                Celia encarou-a com uma expressão desconhecida de Meg, como se a estivesse vendo através de  um espelho.

-          Mas você não precisa se preocupar com isso. Não é o seu costume esse tipo de serviço, não interessa se visarem porque você não vai mesmo fazer de novo. Você só tem que ir lá, levar o lance, dizer uma treta qualquer, pegar a sua grana e se mandar. Você vai para outra cidade, fica por lá, arruma sua vida...

-          E o meu filho? – Meg agora sentia-se entorpecida como se confrontada com uma realidade inimaginável, inteiramente inassimilável em termos do que pensava ser o possível ou o real, bruscamente descortinando-se à sua frente, envolvendo-a numa inesperada inclusão.

-          Bom, aí é que está a coisa. E  só por isso que eu estou te propondo o lance. Veja bem, ninguém quer fazer, eu tenho alguém que topa, me dou muito bem. Mas você não ia querer entrar nessa só por grana, nem eu ia pensar em te envolver só por isso. Mas eu vejo você com essa cara, eu sei que você só quer o seu filho... E o negócio é que se você topar, com a grana que vai pintar dá para a gente resolver de uma vez esse drama.

                Meg concentrou ao máximo sua atenção:

-          Resolver? Resolver como?

-          Eu pego o garoto na casa onde ele está e trago para você, nem queira saber como mas claro que não vai haver nada de mal. A gente traz o garoto, depois que lance feito  vocês se mandam, mas olha bem, se você não quiser não tem problema. É muito arriscado. Mercadoria totalmente ilegal. Como eu já te falei você não precisa saber do que se trata, só leva o lance no lugar certo. Se você chegar lá, então tudo certo. Qualquer problema, sinto muito, você imagina no que é que pode dar. Nem adianta tocar no meu nome. Se houver qualquer coisa eu vou saber e claro  que não vou esperar chegarem até aqui. E depois você não sabe de nada mesmo mas não espere que acreditem nisso. Agora com tudo isso você pondera e vê se vale o risco.

               Meg não hesitou.

-          Pelo meu filho eu faço qualquer coisa.



V –

           Retornou ao quarto. O crepúsculo lançava sombras estranhas nas paredes. Olhou para tudo como se fosse a última vez. As manchas de  mofo, o cobertor ralo, o armário escuro, a lâmpada pendendo do meio do teto. Pensou em sua mãe. Como seria bom se pudessem conversar, se ela pudesse saber, se afirmasse “estou torcendo por você”  mas constatava ser tudo aquilo meramente o impossível. Desde que viera morar na pensão muito raramente via a mãe e Meg resignou-se.
                Não pôde evitar o antigo modo de pensar: se fosse Rafaela, provavelmente a  mãe viria no mínimo toda semana... Sorriu consigo mesma,  um sorriso novo, irônico, um sorriso esboçado como uma pintura de aquarela, uma visão apenas evocada – ela mesma havia renunciado àquele tipo de comparação. A mãe jamais saberia o quanto ela havia mudado. Pensaria nela ainda como a menina que costumava emparelhar à Rafaela, ao verdadeiro ícone do seu amor. Mas nem ela nem Rafaela poderiam se restringir a ser a etiqueta que a mãe lhes havia sobreposto mesmo que a própria Rafaela também não soubesse disso. Eram seres... Meg se deixou pensar no caráter vago daquele indefinível, na novidade de ter uma noção sem definição que no entanto não era apenas uma lacuna preenchível, uma dúvida de sentido provisório como não saber se o teste de emprego resultaria ou não, de modo a ser o intervalo temporal apenas o veículo da dúvida, não, aquele indefinível era mais cortante, constitutivo, era a abertura pela qual sabia agora ver o céu.
             Lentamente arrumou suas coisas. As roupas, as bolsas, os pequenos objetos. Que existência era aquela que vinha sendo a sua, naquele quarto, naqueles meses...? Ao longe ouvia-se o rádio de Mara, as músicas que ela costumava escutar baixinho, Mara, que nunca havia sido sua amiga, que apenas lhe sorria quando se encontravam de vez em quando no pátio, no corredor. Meg pensou que jamais conversariam e repentinamente voltando daquele estado meditativo para um novo sentido atento e prático desejou-lhe mentalmente boa sorte enquanto seus movimentos se faziam mais ligeiros, agilmente colocando tudo no lugar, proibindo-se sentimentalismos.
         Então a manhã veio. Beijou o rosto moreno de Célia, recebeu, surpreendentemente, um saquinho de suspiros oferecidos pela silenciosa dona Juliane e entrou no automóvel onde um rapaz de traços bem delineados mas parecendo incrivelmente cansado a recebeu com um sorriso. Em certo momento Meg percebeu que o trajeto era extremamente confuso, entrecortando ruelas, voltando a lugares já percorridos, como se o rapaz produzisse círculos irregulares na trajetória. Ele a olhou com expressão  maliciosa:

-          Nem que você quisesse você saberia voltar...

          Meg compreendeu que ele tinha razão. Não conhecia aquelas estradas e aqueles caminhos cruzando-se de modo sôfrego, fortuito, não permitiam que ela  pudesse estabelecer um sentido memorizável da rota de modo que simplesmente não sabia para onde estava indo. O sol dominava o mundo, o calor era um modo de ver as coisas pelo ângulo da força, o rapaz não falava muito, limitando-se a sorrir de vez em quando para depois se absorver no ato de guiar daquele modo confuso, espiralado.
              Muito tempo depois estavam em um lugar alto, uma casa velha debruçando-se sobre o horizonte. O quarto era grande, penumbroso, uma lâmpada fazia o ambiente projetar a noite que se avizinhava de modo inexorável como já-aqui ainda que Meg  pudesse entrever pelo basculante recortado na cortina pesada o céu ainda claro, ainda azul.
          Via-se também frente a frente consigo mesmo no espelho, enquanto a transformavam. Não pensou imediatamente no enigma da imagem. Observando-se concluiu que a reflexão do real devia ser uma característica ou propriedade apenas derivada, ainda que imanente às coisas, uma espécie de efeito inevitável mas sem importância, indiferente ao fato de existir.
          Algumas mulheres se agitavam  pelo quarto ocupando-se com ela desde o princípio da tarde em que o carro havia estacionado em frente à casa. Seus cabelos foram cuidadosamente arrumados sob uma peruca, puseram-lhe um vestido amplo por sobre uma espécie de cinturão de lona muito largo a envolver-lhe o ventre, atado às costas por fivelas frias de metal, revestido  por uma camada de espuma que a fazia parecer grávida. Meias de Nylon espessas, sapatos sem salto, completavam-lhe a aparência de futura-mãe.
           Meg contemplou-se assim, falsamente grávida, a imagem no espelho triunfando dela mesma, a imagem estava prenhe, ela seria algo a vir, seu filho, seu filho que encontraria se pudesse sobreviver.
       Inevitavelmente aproximou-se do espelho. Era então necessário descobrir a falha da imagem, o elo que a desvendaria como derivada dela mesma. Inadvertidamente derrubou um frasco de perfume, o ruído dos cacos se espalhando, o cheiro doce impregnando o ambiente...
         As mulheres se entreolharam, apreensivas, a tensão aflorou, uma delas sorriu, conduzindo-a:

-          Tudo bem, é para dar sorte!

                Retornaram à sala ampla por onde havia entrado com o rapaz há algumas horas. Dois homens jogavam cartas na mesa de jantar, uma profusão de armas no sofá, as janelas fechadas, o ambiente artificialmente iluminado por uma lâmpada  semelhante à do quarto, fluorescente, grudada no teto. Ninguém trocou uma palavra enquanto guiavam a Meg pretensamente grávida rumo ao automóvel onde outro rapaz a esperava.
              Agora o sol se envolvia nas nuvens, o veículo avançava, os traços no rosto do jovem gordo se atenuavam, pareciam ganhar vida com a aproximação da noite, um ser noturno existindo na sombra das coisas, algumas daquelas intermináveis voltas, sem falar, aportaram em uma praça da cidade.
                 Eram nove horas da noite. Meg caminhou como lhe disseram para fazer. Não quis pensar no que estaria transportando enquanto os próprios passos ecoavam na rua residencial, tranqüila e encantadora. Eram os últimos instantes de perigo. Se não houvesse obstáculos agora... Árvores projetavam-se suavemente confundindo-se com o céu noturno, manchas aéreas espaçadas por troncos silenciosos. Poderia ser uma bomba... Poderia estourar no meio do universo... Poderia ser armas, tóxicos, uma mensagem secreta, dinheiro, nada... Poderia não ser mesmo nada e tudo não passar de um logro, alguém lhe diria que ela simplesmente havia enlouquecido...
               Um homem grisalho a recebeu. Despiu-se no banheiro, retirando o cinturão de lona sem prejudicar o simulacro de gravidez. Seu filho... De certo modo estava mesmo grávida, se tudo desse certo ela teria o seu filho, estava grávida de um filho que já havia tido, que era o seu. A imagem no espelho projetou-se sobre sua atenção. Havia algo inusitado na imagem como se aquele pensamento houvesse sido uma ponte para uma verdade maior, a verdade da imagem, porque a imagem jamais mentia. Não era um mero efeito daquilo que existia mas também não era uma causa. Seria uma espécie de origem deslocada, não contígua àquilo que dela se originava, um outro universo, paralelo ao efetivo, de onde as coisas provinham?
          Rebelava-se contra a imagem, sua conclusão, seu império absurdo, descabido. O mundo era uma coisa só, devia ser um meio onde tudo e todos eram postos como os elementos de um grande conjunto! Nada possuía o direito de ser mais fundamental. E quem sabe a resposta não estaria em seu olhar? Era ela que via as coisas como coisas, as imagens como imagens...
           O cinturão de lona em suas mãos projetou-se no espaço como uma nova imagem tangível, tão impossível como a origem no espelho. Que é que estava fazendo ali com aquela coisa que não sabia o que era... Apalpou o objeto, sabendo que devia ter pressa, que lhe haviam instruído para não se demorar. O tato nada revelou. Alguém bateu  à porta. Ela compreendeu que estava errando. Arrumou-se com nervosismo. Toda a loucura da ação turvou-lhe os sentidos, sentindo-se a ponto de desmaiar, como se as luzes aflorassem de repente sobre a visão. Ouviu baterem novamente. Abriu a porta. Um homem que lhe pareceu estranhamente com um cão austero a observou com seriedade, conduzindo-a pelo corredor. Ela não sabia o que fazer com o cinturão de lona. Pensou em estender ao homem o objeto mas a atitude dele não pareceu ser de recebê-lo.
         Outras pessoas estavam na pequena sala do apartamento, havia uma mulher escura, fumando um cigarro, um dos homens pegou o cinturão finalmente e instou para que se assentasse:

-          Tudo bem, até aqui?

-          Tudo bem – respondeu fingindo-se natural.

-          Muito bom o seu jeito de grávida.

-           Obrigada.

-          Quem te contratou não foi o Belga?

-          Quem?

          O homem reformulou a pergunta. Ela negou, e deixou que insistisse um pouco mais para então usar o nome que havia sido sugerido por Célia. Ela assegurara a Meg que fariam o nome circular de modo que se criaria uma expectativa em torno dele ainda que se tratasse de um personagem completamente imaginário.

-          Certo. – O homem pareceu considerar o caso. O nome ressoava. Ouviu falar nele. Provavelmente não era um blefe. Deixou-a ir.

               Meg entrou no táxi. Olhou em volta. Não havia mais perigo agora, pensou. O mundo inclusivo... Procurou agarrar-se àquela idéia enquanto o coração crepitava na ânsia de ver o seu filho. Então reparou que as bordas laterais da visão do trânsito se alteavam. Sua visão alterada descortinou um mundo de faixas verticalmente transpostas como degraus de uma escadaria sem fim que era o mundo, degraus sem relevância nem hierarquia, degraus de tempo indo esvanecer-se no horizonte, faixas infinitas onde os seres instituíam movimentos conforme um sentido interno, inassimiláveis uns aos outros, não havia totalização possível, a heterogeneidade pura a alcançou como uma percepção até então proibida, transgressiva...

-          Vai chover! – Sugeriu o motorista. Sua visão realinhou-se. A aparência do espaço homogêneo transpareceu em suas palavras triviais como uma reassunção de que assim eram as coisas, todos conheciam o intransponível mas todos obedeciam o contrato de que a linguagem era a garantia.

-          Mamãe!

          Abraçou o menino com todo o seu amor. O hotel era simples mas decente. Ficariam ali aquela noite. No quarto, vendo televisão, ela conversava com Rui.

-          A moça me falou que era para eu vir que você estava aqui, eu nem falei com a vovó, e agora, a vovó...

-          Não se preocupe, eu já conversei com ela. – Meg inventou aquilo apenas para que ele se tranqüilizasse. Rui abraçou a mãe inserindo-se em seu colo como costumava fazer. Ela o aninhou, confortando-o, notando que apesar da excitação ele estava ficando com sono.

-          E a escola? Vou ter que ir para a escola? – Meg percebeu-lhe a hesitação. Pensou que ele devia estar lembrando os avós, a casa confortável, a rotina despreocupada que vinha tendo e temeu que na verdade ele os preferisse, ou que mesmo, fosse o melhor para ele. Suspirou tentando afastar a preocupação.Não sabia ainda como organizaria as coisas... E se Rui quisesse ainda os avós, o pai?

-          Vamos ver... – Afirmou, evasiva.

-          Quando o papai vem me buscar? – Ele tornou a perguntar. Meg olhou o rostinho moreno, os olhos brilhando de expectativa misturada com o sono.

-          Eu não sei. Depois a gente resolve isso. – Respondeu afinal. Afastou as dúvidas numa atitude interior firme. No momento certo... Então ela saberia o que fazer. Mesmo que Rui viesse a preferir os avós, estavam agora ali e era tudo o que ela queria. Depois... Depois...

             Adormeceram ao mesmo tempo, despertando com o sol da manhã. Meg chegou à rodoviária com Rui. Os guichês enfileirados ofereciam-se como possibilidades a escolher entre as regiões que eram aglomerados de cidades... Rui apontou intuitivamente para um deles. Meg comprou os bilhetes.     


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